Com humor, Julia Wähmann trata de perdas e demissão

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Você pode nunca ter sido demitido, pode já ter passado por isso algumas vezes (imagino que uma ou duas, no máximo, caso tenha nascido nos anos 1980) ou pode viver a expectativa disso há anos. E, com certeza, conhece alguém que já passou pela situação de ser dispensado. O fato é que você vai se identificar imediatamente com a personagem criada pela carioca Julia Wähmann nessa preciosidade que é o Manual da demissão. Então preste muita atenção quando colocar as mãos nesse livrinho: ele vai conversar diretamente com você e sim, vai fazer você rir de tão trágico o drama narrado. E ter algum carinho pela situação dolorida de ser dispensado.

Quarto livro da autora, segundo romance, Manual da demissão foi escrito depois de a própria Júlia ter sido demitida de uma empresa do mercado editorial. Pessoal de “humanas”, como ela constata, tá sofrendo. “É a crise, né?”, ouve a personagem o tempo inteiro. Após a dispensa, começa um périplo burocrático e psicológico tão cheio de altos e baixos que Júlia se sentiu impelida a escrever. Primeiro, contando no Facebook sua peregrinação pelos órgãos públicos atrás de FGTS e seguro-desemprego. Depois, passando para a ideia do livro, escrito muito rapidamente ao longo de um ano. “Tentei fazer alguma graça em cima desses processos que são muito difíceis e que pioram com toda essa questão da burocracia brasileira, que é uma loucura e que a gente não tem como escapar”, conta.

Manual da demissão é o retrato de uma geração. Escrito com muito humor, porque Julia não queria fazer um livro depressivo e tem o humor em alta conta sempre que escreve, trata da sombra constante sobre essa geração nascida nos anos 1980, testemunha de um período festejado da economia brasileira e agora vítima da decadência desse mesmo sistema. “A gente viveu um entusiasmo muito grande e, de repente, a coisa andou pra trás e chegou nesse ponto de 13 milhões de desempregados e de uma falta de perspectiva. É um livro que fala de uma classe média que acreditou num projeto que agora está ruindo diante dos nossos olhos”, avisa Julia. “E acho que tem uma expectativa quando você é mais jovem de que aos 35 você já vai ter uma estabilidade, uma carreira, uma independência e, de repente, a gente se vê nesse cenário muito árido.”

Algumas passagens são marcantes em Manual da demissão. A protagonista tem um medo constante de que seu FGTS seja confiscado pelos governantes (resquícios da era Collor), lembra o tempo todo das reformas que farão a mão de obra brasileira trocar a palavra emprego por trabalho e constata um caos à sua volta, com amigos sendo demitidos aqui e ali, um atrás do outro. “A palavra `emprego´caía em desuso. Um dia acordaríamos e a lógica vigente seria oposta à que até então regia as leis da sociedade: os empregados seriam minoria. A classe trabalhadora se transformaria num grupo para o qual se olha com desconfiança, receio, como se fossem pragas, ou ameaças à maioria desempregada”, escreve a autora, num delírio futurístico que está mais para os dias de hoje mesmo. Outro sinal dos tempos: o êxodo para Portugal. A narradora é resistente e decide não ir, mas fica quase órfã de amigos, todos parte de uma debandada para a terrinha, e passa a sofrer da inventada síndrome de Saramago. Difícil não rir diante das constatações da narradora.

O desemprego não é a única tragédia da personagem. Ela também acaba de ser dispensada pelo namorado, o que não ajuda muito na tentativa de manter a sanidade. É nessa combinação que a narradora nos lembra o quanto a relação com o emprego pode ser semelhante à relação amorosa.  E tem a música. Manual da demissão vem com trilha sonora porque Julia tem uma saudável mania de fazer listas de música. E sim, para cada momento trágico, engraçado ou dramático há uma canção correspondente. A trilha vai de Só pra contrariar a The Smiths.

Aos 35 anos, Julia Wähmann faz parte de uma geração de escritores muito ancorados no Brasil contemporâneo, até porque suas vidas são diretamente afetadas pelos rumos do país. Embora seu último romance, Cravos, trate de dança e seja quase um poema, a autora é fruto de seu tempo e Manual da demissão, um livrinho geracional muito necessário.

Manual da demissão

De Julia Wähmann. Record, 144 páginas. R$ 32,90

ENTREVISTA: JULIA WÄHMANN

O livro é autobiográfico, mas fala de uma situação comum, de um momento do país…

O livro ganhou essa dimensão porque vai além da minha experiência. Me dei conta disso depois que as pessoas começaram a ler. As leituras são muito positivas no sentido de como o livro sintetiza um momento do país. Querendo ou não, se torna até um livro político, apesar de não ser explicitamente político ou militante nem pretenda fazer uma análise séria e sociológica. Ele ganha essa outra dimensão, trata de uma dor coletiva. Hoje, qualquer brasileiro tem esse medo de perder o emprego, tem essa desesperança. E o livro vai além do que eu vivi.

Como o humor é importante para encarar um tema que nem sempre é rodeado pelo bom-humor?

Tenho uma tendência a usar o humor de diversas maneiras e acho que o humor está aí para permitir que a gente fale de assuntos muito espinhosos sem que tudo vire uma grande tragédia. Eu não queria escrever um livro que deprimisse as pessoas. Acho que ele tem uma densidade, claro que tem uma dor, não tem como escapar, mas o humor permite que a gente fale desses assuntos. No cotidiano dessas etapas burocráticas e desses discursos que a gente acaba falando pra gente mesmo, tem umas situações cômicas. Acho que o humor que botei no livro procura esse caráter do absurdo que você não acredita e que fica estarrecido.

Nem o parto humanizado escapou na comparação que você faz entre esse tipo de procedimento e a demissão. Existe demissão humanizada?

Acho que não é fácil para nenhum dos lados. Ouvi histórias de pessoas que tiveram que demitir outras. Não sei se tem uma maneira menos traumática.

Qual a distância entre o Cravos e Manual da demissão?

O Manual da Demissão foi um processo bastante rápido, aproveita um momento e é oportuno num bom sentido. Cravos é um livro mais abstrato, quase um livro-poesia, que trata de dança, de uma paixão revista através da dança. É mais subjetivo e mais sutil em tudo, enquanto Manual da demissão é um deboche. Foram dois processos bem diferentes. Cravos foi construído a partir de um blog que escrevi durante muito tempo. E o Manual da demissão partiu de outra mídia e é mais sofrido, até porque partiu de algo que vivi.

Nahima Maciel

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