O navio da morte e a gripe espanhola no Brasil

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Lilia Schwarcz quase ficou detida nos Estados Unidos em março, quando a Organização Mundial de Saúde (OMS) decretou a pandemia. Ela dava aulas na Universidade de Princeton quando o país começou a tomar as medidas de isolamento com o fechamento das fronteiras. “Eu passei pela chegada de duas pandemias, porque estava dando aulas em Princeton, e fui quase retirada da universidade: ou volta ou fica por aqui”, conta.

A antropóloga conseguiu embarcar de volta para o Brasil, depois de uma quarentena iniciada em Nova York. Ou seja, Lilia está confinada desde antes de março. Foi um tempo produtivo, que resultou em A bailarina da morte – A gripe espanhola no Brasil, livro escrito em parceria com a historiadora Heloisa Starling, um trabalho de fôlego que investiga como se deu a chegada e a disseminação da pandemia de 1918 em território brasileiro.

Para traçar o caminho do vírus influenza naquele início de século, as autoras seguiram o navio Demerara, que atracou no Recife numa manhã de setembro de 1918, com alguns tripulantes contaminados. Vinda de Liverpool (Reino Unido), a embarcação seguiu rumo ao sul. Pelo caminho, contaminou as cidades nas quais atracou, incluindo Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo, e plantou o vírus no porto pernambucano, de onde ele se espalhou por praticamente todo o Norte e Nordeste.

A bailarina da morte segue o Demerara. Com capítulos divididos por cidades, Lilia e Heloisa contam como a influenza impactou e devastou a vida da população brasileira em um momento em que não havia sequenciamentos genéticos de vírus nem tecnologias vacinais tão desenvolvidas quanto as de hoje. No entanto, as semelhanças com a situação atual parecem saltar da pesquisa de Lilia e Heloisa a cada página. Desinformação, falta de interesse das autoridades, abandono, isolamento social, novos hábitos de higiene e até o uso da hirdoxicloroquina tornam inevitável traçar paralelos entre 1918 e 2020, embora as autoras evitem o exercício para não dar um ar de anacronismo ao livro.

Na narrativa, a intenção é mergulhar o leitor no contexto sociopolítico e sanitário da época ao contar a história de personagens que se destacaram durante a pandemia, mas também de anônimos que viveram a tragédia de ver corpos empilhados nas ruas em decorrência da extrema mortalidade trazida pela influenza. “Foi uma maneira de transformar a crise num propósito, porque o livro tem um claro caráter político, Ao falar de 1918, obrigatoriamente falamos de 2020. Não que as conclusões tenham sido condicionadas pela atualidade, mas o livro guarda um debate evidente nesse momento de obscurantismo”, diz Lilia.

A bailarina da morte nasceu de uma constatação que intrigou as autoras: não havia, no Brasil, um livro sobre a gripe espanhola. “Vi como existia, já na época, no próprio contexto, um imenso silêncio. E falei com Heloisa sobre essa ideia, o que era esse silêncio e por que não escrevíamos. Resolvemos tentar fazer o livro”, conta Lilia. No início do projeto, as pesquisadoras não imaginavam que não poderiam se encontrar, mas o isolamento tornou-se cada vez mais necessário com a evolução epidemiológica do coronavírus e foi preciso um plano B para tocar a pesquisa. Nisso, fontes como jornais e fotografias cumpriram papel simbólico muito importante. “Se não fosse a memória dos jornais de 1918, dificilmente faríamos esse livro. E isso lembra muito o consórcio de imprensa em 2020. E se não fossem os médicos, que passaram a escrever a partir da década de 1950, e as universidades, que, a partir de ensaios e doutorados, redigiram belíssimas peças sobre o que foi a espanhola em diversos estados. Só pudemos escrever graças a eles e aos fotógrafos da época.”

A pandemia de influenza foi curta no Brasil. Começou em setembro de 1918 e, na virada do ano, já era passado. No carnaval de 1919, o vírus parecia ter desistido de circular e a folia seguiu seu curso sem grandes impedimentos. Em 2020, o cenário é outro. Longe da estabilidade, mais próximo de uma guerra de vacinas do que de uma “volta ao normal”, o mundo encontrado pelo coronavírus tem outras particularidades. Mas 1918 ainda é capaz de ensinar e dar lições.

Não parecia sobrar muito para uma pessoa comum fazer, além de lavar as mãos, sentir-se vulnerável e começar a se isolar por conta própria. No entanto, a solidão aumentava o pânico. E fazia crescer a percepção da fragilidade que cada um experimentava, cuidando apenas de si. É o momento em que o indivíduo descobre que a morte pode vir de qualquer lugar, a qualquer instante, e entende a impossibilidade de obter ajuda ou confiar nas respostas fornecidas pelas autoridades políticas e sanitárias”

A bailarina da morte – A gripe espanhola no Brasil
De Lilia M. Schwarcz e Heloisa M. Starling. Companhia das Letras, 376 páginas. R$ 59,90

Entrevista – LILIA SCHWARCZ

Você decidiram dividir o livro em capítulos dedicados às cidades. Quais foram os desafios desse formato? Houve regiões mais difíceis para a pesquisa?

As regiões mais fáceis são as que foram dominadas pela historiografia: São Paulo e Rio. Havia até abundância de fotografia. Mas tínhamos certeza, por conta da experiência atual, que era preciso contar essa história de forma descentralizada e tivemos certeza, então, de seguir o navio da morte, a rota da morte em 1918, o Demerara. Ele veio contaminado e foi levando a morte para Recife, Salvador, Rio, Santos, de onde interiorizou. E, ao interiorizar, a gente sabe que foram sendo construídos vários vetores: a doença desceu e chegou em Rio Grande, foi para o centro do Brasil. Queríamos fazer Goiás, mas foi mais difícil, mencionamos como várias tribos desapareceram. Encontramos excelentes trabalhos em Belém e em Manaus, são capítulos muito importantes no livro. Até porque é possível perceber um diálogo entre saberes: primeiro entre saberes científicos, mas também os ditos populares, que, na minha concepção como antropóloga, são tão complexos quanto os científicos.

É impossível não comparar com a pandemia de 2020, mas vocês fizeram um exercício de não fazer isso o tempo todo, de deixar para o final. Foi difícil evitar essas comparações?

Uma controlou a outra. Claro que você vai ao passado com questões do presente, isso é muito relevante, mas isso não quer dizer que vamos participar de cara do anacronismo. Não nos dávamos conta de quantas semelhanças encontramos. Lembro do dia, na primeira vez que falamos do livro, quando eu tinha acabado de me deparar com o sal de quinino. Sal de quinino é também usado para combater a malária e é o mesmo princípio de cloroquina. Essas coisas, fazíamos juntas e foi impossível não pensar… Não é dito no capítulo para não configurar anacronismo, mas, na conclusão, sim. Nenhuma autoridade sanitária e médica adotou o sal de quinino, ele era vendido pelas farmácias. Os anunciantes colocavam nos jornais, mas você não vê uma autoridade apoiando o uso do sal de quinino, diferente do contexto atual. Acolhemos as coincidências e deixamos circunscritas ao contexto para, ao final, fazer os paralelos.

É possível pensar, agora, em um livro sobre a guerra da vacina? Haveria muitas semelhanças com a contemporaneidade?

Pela bibliografia que li ficou claro que a história da vacina é a história de revoltas. Ela é obrigatoriamente polêmica, porque você tem que convencer o paciente que vai inocular a doença. Em doses não mortais, mas vai inocular. Então todas as histórias de vacinações são a história de uma série de revoltas. E uma coisa que me chama muito a atenção é que a revolta da vacina de 1904 pode ser considerada uma das primeiras do pós-abolição. O povo brasileiro achou que vinha a igualdade e não veio. Com a república, achou que viria uma inclusão social que não chegou e a revolta da vacina responde muito a esse termômetro. Mas também é uma revolta contra o governo. Hoje sabemos que a vacinação era absolutamente necessária, praticamente erradicou a doença. E por que houve revolta? Não porque o povo era desinformado. O povo se revoltou contra a falta de informação, de diretriz. Ninguém no governo, e na época era Oswaldo Cruz, que não é pouca coisa, teve preocupação de informar a população sobre o que acontecia. O que estamos vivendo agora em 2020 é um processo muito paralelo.

Por quê?

Temos um chefe do executivo que temos que torcer para não atrapalhar, porque ajudar, não ajuda. E ele vem atrapalhando. Não me importa muito o que Bolsonaro pensa como pessoa, me importa mais o que avaliza e ele vem avalizando um total descaso com a doença. Penso que é hora de fazer uma revolta da vacina ao contrário, exigindo a vacina. Temos um presidente que politizou a vacina. Pandemias não são questões ideológicas, não acabam na base do ‘tá ok’, e não estamos no final da pandemia. Não fizemos um papel bom no combate e temos um presidente que é contra a vacina e não diz a verdade. O Brasil tem uma política de vacinação das mais reconhecidas e valiosas e que está caindo por terra na presidência do Bolsonaro e na gestão de seu ministro general. O fato de esses números estarem tombando tem uma repercussão tremenda. E quando falamos de obrigatória, não falamos que os médicos entrarão na casa das pessoas e imporão. Se você não for vacinado, você não terá o documento e não entrará em certos países. Essa obrigação já existe, por exemplo. É um momento de muita insegurança. Estamos vivendo o dia de hoje sem planejamento do futuro, e estamos vivendo essa calamidade de um governo que não faz o ritual de luto, que nos custará muito em termos de traumas futuros, coletivos e individuais. Os bons presidentes serão medidos a partir da política transparente que venham a fazer, pelo uso de boas informações e, por fim, a partir das perspectivas e diretrizes claras que venham a importar nos seus governos. Infelizmente, acho que as perspectivas são difíceis.

Nahima Maciel

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