Filha da diáspora: uma vida entre Portugal e Angola

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Vitória é uma personagem curiosa. Quer saber o que houve com sua mãe, uma guerrilheira angolana que deixou a filha aos cuidados do avô para lutar pela independência de Angola nos anos 1970. Quando a guerra se instala, a família carrega Vitória para Portugal, onde ela vive uma vida a meio caminho entre duas culturas, na pele e nas tradições.

Com o futuro encaminhado, alguma estabilidade, um marido a caminho e uma família amorosa, a personagem poderia saltar o passado e seguir adiante, mas Vitória é desassossegada. A ideia de uma mãe guerrilheira desconhecida, cuja morte ninguém confirma, assim como ninguém garante se está viva, perturba a jovem. E é em busca desse passado, que é também todo o presente de gerações de imigrados, ex-colonos e africanos desterrados, que ela empreende a jornada de Essa dama bate bué!, uma surpresa delicada da literatura da diáspora.

Yara Nakahanda Monteiro é, ela mesma, uma filha da diáspora. Nasceu em Angola, cresceu em Portugal, morou em várias cidades, passando por Rio de Janeiro e Londres. O romance navega por esses mares de perdas e ganhos dos movimentos migratórios, visita uma memória coletiva que é também individual, afinal, cada um tem a sua vivência da guerra, e a de Vitória envolve a orfandade, mas também a recuperação de suas raízes. “Vitória surgiu de forma bastante orgânica: a partir da experiência da perda e da partida de um lugar entendido como sendo a nossa casa, país, cultura e identidade, originando o exílio interior vivido pela personagem”, avisa Yara, que também é poeta e apresentadora de um programa de rádio na RDP África.

A diáspora de Yara passa por questões de gênero, com uma personagem prestes a se encaixar na narrativa tradicional que dela se espera. O reencontro com a própria história e com a trajetória da mãe, no entanto, implantam em Vitória a urgência da verdade na própria intimidade. Abaixo, a autora conta como levou para o livro reflexões sobre decolonização, racismo, gênero e identidade.

Essa dama bate bué!

De Yara Nakahanda Monteiro. Todavia, 198 páginas. R$ 64,90

Entrevista: Yara Nakahanda Monteiro

Como a sua trajetória e a de Vitória se entrelaçam?

A história do livro é 100% ficção e 100% realidade. A imaginação, quando se entrelaça com a vida, derruba todas as fronteiras. As nossas trajetórias são paralelas, intersectando-se em vários territórios geográficos e emocionais, o que possibilitou a criação de um mosaico narrativo onde as nossas histórias se confundem. A primeira frase do livro – “A minha primeira memória é uma árvore; a segunda uma onda.” – traduz esse vínculo. Tenho como sendo a minha mais antiga recordação visual o mar da praia das Maçãs. Inquietava-me, também, a perda da minha negritude e o meu reencontro, consciente, enquanto mulher. Como escreveu Lélia Gonzalez: “A gente não nasce negro, a gente se torna negro. É uma conquista.”

Vitória retorna à terra de seus ancestrais para se reencontrar com suas raízes e com sua própria história, mas também se depara com um território marcado pelo imperialismo, pela desigualdade e pela violência, herança colonial. Por que é importante essa trajetória?

A viagem suscita questionamentos à personagem. Estes apenas são possíveis pelo seu deslocamento de Portugal e pelo distanciamento da sua identidade e da família aportuguesadas. Vitória confronta-se com a falsidade da Angola utópica em que acreditava: o paraíso colonial.

A identidade tem sido um tema frequente entre autoras de origem africana na literatura de língua portuguesa. Esse tema tem aparecido cada vez mais. Por que, na sua opinião? E por que agora? Que momento é esse que vivemos em que é urgente erguer essas vozes?

Importa ressaltar que a identidade sempre foi problematizada e (des)construída na literatura de origem africana em língua portuguesa, tanto por escritoras como por escritores. Temos os escritos de Paulina Chiziane, Ana Paula Tavares, Noémia de Sousa, Lina Magaia. A literatura africana de expressão portuguesa sempre se alimentou desta tensão entre o Sul e o Norte da linha do equador, África e Europa, negritude e branquitude. A minha geração está a dar continuidade ao mesmo questionamento, mas através de outras e novas perspectivas, vivências e histórias.

Qual o papel da literatura na reflexão sobre descolonização? E como esse tema é importante para você?

A literatura possibilita a reflexão sobre a descolonização quando partilha histórias também do lado colonizado. Para mim é importante contar histórias silenciadas, humanizar a História com H maiúsculo. Desejo suscitar a reflexão, o questionamento, apresentar narrativas alternativas. Todas as histórias deverão poder ser contadas. A literatura, para mim, pode funcionar como um espaço de mediação naquilo que nos separa: a minha História, a tua História; a história pela perspetiva do colonizado e pela do colonizador. O leitor torna-se testemunha dessas outras histórias. O meu propósito não é o do historiador ou o do sociólogo; é apenas e somente o de contar histórias e gerar emoções em quem lê os meus livros.

Pouco lemos sobre o papel das mulheres na guerra de Angola. Por quê? E que papel elas tiveram?

Alguma bibliografia está disponível no mercado, mas não é de fácil acesso. Recordo-me de: O livro da paz da mulher angolana: As heroínas sem nome, organizado pelas escritoras Dya Kasembe e Paulina Chiziane; Angola: Quando o impossível se torna possível, de Anabela Chipeio Muekalia; Diário de um exílio sem regresso, de Deolinda Rodrigues. Os três livros são narrativas pessoais e de memórias. De uma época diferente, mas de grande importância, é a história da rainha e guerreira Njinga Mbandi. A mulher angolana, nos conflitos nacionalistas e na metamorfose política e social do país, teve um papel ativo e equiparado ao da contraparte masculina. Porém, a sua luta e resistência foi dupla: contra o colonizador e contra o regime patriarcal militar e patriótico. É preciso que mais e mais histórias sejam contadas, ficcionadas, para que se reflita e pense a sua existência, como heroínas da resistência angolana e do patriarcado.

Nahima Maciel

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