Foi quando Belchior desapareceu – ou começou a desaparecer e virar mito – que o jornalista Jotabê Medeiros deu início à pesquisa para uma biografia do compositor. Era 2007 e o artista havia sumido misteriosamente.
Deixou dívidas mas, sobretudo, deixou a certeza de que não queria ser encontrado. Em abril deste ano, o mundo soube de Belchior novamente. Dessa vez, a notícia veio com tristeza: o cantor e compositor estava morto. Sofreu um aneurisma da aorta em Santa Cruz do Sul, onde se refugiara na última década.
A notícia fez o jornalista Jotabê Medeiros mudar todo o contorno da biografia Apenas um rapaz latino-americano, que estava pronta e chega às livrarias neste sábado (26/08). Libertos da lealdade a Belchior, que era muito zeloso de sua privacidade e desapareceu para ficar longe das consequências da fama, amigos e familiares do compositor decidiram falar com Medeiros. E ele precisou refazer várias partes do livro. Dessa vez, com depoimentos preciosos concedidos no momento de emoção que se seguia à morte de uma das estrelas da MPB.
Medeiros conversou com Angela Margareth Henman, mulher de Belchior por mais de 34 anos, com a filha Camila, com os compositores, músicos e intelectuais que formavam a turma “pessoal do Ceará”, migrantes radicados em São Paulo em busca de um lugar na cena musical, tomada pelos tropicalistas da Bahia naqueles anos 1970. Gente como o filósofo Augusto Pontes, os compositores Fausto Nilo e Jorge Mello, e Fagner, eterno desafeto.
Sobre as desavenças com Fagner, aliás, Medeiros narra vários episódios. Os dois teriam se desentendido musicalmente – Fagner mudou a melodia de Mucuripe, obra-prima feita em parceria com Belchior, e isso desagradou – e na esfera privada. No livro, é marcante uma cena na qual os dois brigam por uma jaqueta. Não havia carinho nem amizade entre os compositores – e Fagner sempre deixou isso claro em entrevistas -, mas Medeiros acredita que havia, sim, um afeto mínimo. Segundo a biografia, o autor de Borbulhas de amor enviou três coroas de flores ao enterro do conterrâneo mas pediu que seu nome não constasse no arranjo. Mais tarde, visitou o túmulo incógnito.
A animosidade de Belchior em relação a Caetano Veloso também é um ponto explorado de forma interessante em Apenas um rapaz latino-americano. Medeiros coteja letras de música nas quais o cearense parece responder ao baiano tropicalista em um tom de quem fala com um monstro da geração anterior.
Entre as revelações da pesquisa de Medeiros está a de que Apenas um rapaz latino-americano, uma das canções mais conhecidas de Belchior, nasceu em Brasília. Gravada em 1976 no disco Alucinação, o título da música foi pescado de uma fala do filósofo Augusto Pontes durante uma master class na Universidade de Brasília (UnB). Belchior e Fagner estavam na sala de aula quando o amigo se apresentou: “Eu sou apenas um rapaz latino-americano sem parentes militares”. Belchior gostou da gracinha em plena ditadura e mudou um pouco o final. Na canção, o verso passou a ser “Eu sou apenas um rapaz latino-americano sem dinheiro no banco/sem parentes importantes”.
Augusto Pontes não gostava quando diziam que Belchior havia roubado sua boutade. Sentia orgulho do empréstimo e não admitia que falassem assim do amigo. Medeiros conta que muitas fontes confirmaram a história e que, por isso, decidiu incluí-la no livro. O jornalista também fala muito sobre os mitos inventados pelo compositor sobre ele mesmo. São muitos, e engraçados. O desaparecimento, aliás, é o maior deles e o único mais ou menos concretizado. Medeiros ficou anos fuçando para ver se descobria o paradeiro do músico. Ouvia de um que, outro dia, ele esteve na Paulista e de outro que estava em um acampamento dos sem-terra, mas foi Zeca Baleiro quem deu a dica verdadeira. “Era o Onde está Wally? preferido do brasileiro”, brinca Medeiros. Por lealdade, Baleiro não revelou a localização de Belchior, mas disse que os dois tomaram um vinho depois de uma apresentação em uma feira agropecuária. Medeiros descobriu então que a tal feira acontecera em Santa Cruz do Sul. Decidido, comprou passagem e convenceu um fotógrafo amigo para ir atrás de Belchior. Mas a morte de um irmão impediu o jornalista de prosseguir com plano. Abaixo, ele conta como foi escrever a biografia sabendo que o compositor estava vivo por aí.
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Belchior – Apenas um rapaz latino-americano
De Jotabê Medeiros. Todavia, 240 páginas. R$ 49,90
Entrevista: Jotabê Medeiros
Como foi a pesquisa para a biografia sempre na expectativa de encontrar o Belchior?
Quando comecei o livro, há um ano e meio, ele estava desaparecido há um tempão, mas era uma história que eu tinha interesse em desvendar o mistério. Como jornalista, isso me fascinava. E Belchior é um dos meus primeiros ídolo. Em 1998, eu o entrevistei, ele estava lançando um disco de carreira, mas a entrevista não foi fantástica. Foi uma entrevista protocolar, dessas que a gente faz em jornal, apressadamente. Me ressinto um pouco disso, porque era tão importante para minha vida eu devia ter feito algo de mais fôlego. Mas não rolou. Daí eu me acostumei a encontrar ele em alguns lugares em São Paulo. Ele era cliente de uma locadora em Pinheiros e eu encontrava o Belchior como cidadão comum. E comecei, na época, a reunir algum material. Mas o sumiço dele fez com que me desse conta de que a figura dele era muito pouco conhecida, ninguém sabia direito a história dele, os herdeiros eram muito sucintos, uma filha dele morava em Londres, ninguém sabia direito que família tinha o Belchior. Eu sabia que era casado, mas ninguém sabia quem era a mulher dele, os filhos e tal. Ele era muito cioso da privacidade. E aí comecei a perceber que teria que ir a fontes primárias. Foi quando comecei a entrevistar pessoas que desfrutaram da intimidade dele. Tive que fazer a arqueologia da personalidade dele a partir dos vestígios de amigos, parentes, filhos, ex-mulheres, ex-namoradas, músicos e produtores
Ele era muito reservado quanto à privacidade. Isso dificultou a pesquisa?
A mulher com a qual foi casado por 34 anos, Angela, só aparece na mídia quando vai ao funeral. Até então, se você procurar no Google não vai achar nem uma foto dela nem dos filhos. Isso dificultou bastante. Mas a morte dele abriu as portas. As pessoas perderam as reservas porque havia um certo pacto implícito com ele, as pessoas sabiam que ele era assim e respeitavam, mas com ele morto não havia mais sentido manter esse pacto, aí consegui falar com muitos familiares. O livro já estava pronto e teve que ser reformulado quase inteiro. Ele ganhou um novo contorno a partir do aparecimento dessas pessoas, com depoimentos mais íntimos, mais emocionais
Você esperava que ele aparecesse depois de lançar o livro?
Eu sonhava que ele apareceria na noite de autógrafos e ficaria parado na minha frente, para dizer “li, mas tenho reparos”. E eu ia falar que aguardei ansiosamente que viesse me dizer isso, porque era uma coisa que eu achava que certamente ele ia ler. Ele era um cara muito informado, se manteve informado de tudo que estava acontecendo no país durante todo o exílio, então acho que ia aparecer e dar a opinião dele sobre o livro.
Você fala bastante sobre as rivalidades entre Belchior e Fagner. Como isso começou? Eles realmente se odiavam?
Ele e Fagner surgiram juntos. E tem a história de Mucuripe e de o Fagner ter mudado o arranjo. Eu acho que essa é a origem desse conflito sanguíneo entre os dois. Isso atravessa quase 50 anos, foi em 1969 e chega ao século 21. Pouco antes de Belchior morrer, alguém pergunta para o Fagner em uma entrevista o que ele achava de Belchior ter sumido, se eles eram amigos e tal. Ele diz: “olha infelizmente nós não somos amigos. Poderíamos ter sido grandes amigos, mas não fomos”. Isso me chamou a atenção, porque é muito recente essa declaração. Depois que Belchior morreu, ele foi mais cavalheiresco, embora não tenha sido amoroso. Ele fala que nunca foram amigos, mas não é tão verdade porque o Fagner frequentava a casa dele em Fortaleza. Mas isso acho que está menos no território da dialética artística e mais no território do coração.
E com Caetano Veloso?
Já com Caetano Veloso é uma relação dúbia. É como se dissesse “eu tenho que matar o velhote que veio antes para que o novo surja”. Tem uma música que ele fala isso, que o novo sempre vem e que é preciso superar o antigo. É uma coisa que ele fala muito. E a oposição a Caetano é uma oposição geracional mesmo, não é literalmente exterminar o antecessor, mas afirmar o lugar para as novas gerações que estão surgindo e estão sendo sufocadas por aquela presença um tanto quanto opressiva do talento dos baianos. Eu via muito isso no Belchior, uma tentativa de demarcar um território, de abrir caminho num lugar que só aceitava um tipo de discurso e de atitude frente à música, aquela atitude do tropicalismo. Ele tinha que se posicionar. Nisso ele foi um líder solitário, porque ninguém o seguiu. Fora o Fagner, que teve uma briga monumental com Caetano, mas que foi uma briga fidagal, não tão no território dos conceitos artísticos mas do próprio enfrentamento mais brutal.