O leitor do século 21 é uma espécie de sobrevivente. E também um salvador. Cabe a ele salvar o ato de ler. O escritor argentino Alberto Manguel não é exatamente um otimista nesse campo, embora seja um Dom Quixote da leitura, com sua biblioteca de 30 mil livros no interior da França. Leitores e escritores como Manguel estão em extinção, por isso vale a pena prestar atenção nas comparações e alegorias que costumam usar. Em O leitor como metáfora, Manguel investiga os significados simbólicos da leitura para concluir que há três tipos de leitores.
“Há muito tempo, desde sempre, eu falo e escrevo sobre a leitura e os livros. E, para isso, emprego imagens e metáforas. Um dia, me perguntei o significado desses vocabulários metafóricos, por que falamos sobre a leitura com um vocabulário gastronômico, ou um vocabulário de viagem, ou ainda de reclusão, isolamento. Algumas respostas estão no meu livro.”
O viajante faz do livro todo um universo. Das iluminuras do século 15 aos meios eletrônicos contemporâneos, esse tipo de leitor encara o livro como a vida, o mundo como um texto e a leitura, como uma viagem. É, Manguel lembra, a metáfora mais antiga já concebida para o ato da leitura, da Bíblia ao Kindle, de Homero à Amazon. “A vida como uma viagem é, como vimos, uma das nossas mais antigas metáforas”, escreve o autor, nesse ensaio publicado originalmente em 2013 e que agora chega ao Brasil pelas Edições Sesc São Paulo.
O alheamento ao mundo é característica do segundo tipo de leitor. Esse está confortavelmente instalado em sua torre de marfim e mergulha na leitura para não estar no mundo. Ou para estar em outro mundo. Traduzir o mundo em palavras, alimentar a vida interior, mergulhar na privacidade, recolher-se são movimentos desse leitor, um intelectual que Manguel chama de melancólico, encarcerado em sua torre, em oposição à ideia de massas e multidões.
Na terceira metáfora, o leitor inventa o mundo a partir de suas leituras, é um devorador de livros. Tal qual uma traça, coloca para dentro de si os pedaços da história e acredita que tudo que lê é real. Às vezes, nessa paródia, o leitor é também um sujeito tolo, que tudo lê e nada retém. E está sempre arrebatado pela leitura.
Hoje em dia, segundo Manguel. não há predominância de um tipo de leitor. Todos coexistem. O que há é uma profunda modificação da prática em consequência do desenvolvimento tecnológico e da digitalização. Manguel lembra que todo instrumento modifica o ato para o qual é empregado e a eletrônica é uma tecnologia que privilegia a rapidez e a brevidade. “A leitura é um ato lento e profundo. O choque entre essas duas tendências dá à leitura ou um contorno fragmentário e fragmentado do ato de ler, ou um gesto de oposição, ou seja de desvio, do instrumento eletrônico”, diz o escritor.
Ainda assim, os livros podem nos ajudar a compreender o mundo. Eles abrem portas e janelas, embora sair e tomar o caminho dependa de uma força subjetiva. A motivação de Manguel para continuar lendo vem de seu próprio interesse pelo mundo. A curiosidade e a necessidade de escapar à besteira cotidiana o levam para os livros. Nesse universo, o leitor tem um papel: “Como sempre, é o de um náufrago que se esforça para sobreviver em um oceano de estupidez. O papel do leitor é o de um salvador do prestígio do ato intelectual”.
O leitor como metáfora
De Alberto Manguel. Edições Sesc, 148 páginas. R$ 45
TRÊS PERGUNTAS PARA ALBERTO MANGUEL
O intelectual está em vias de desaparecer?
Não. É toda a raça humana que está desaparecendo.
Como seria o Gilgamesh dos tempos modernos, o leitor que viaja? É possível viajar por meio da leitura em um mundo tão cheio de estímulos e tecnologias?
Era assim ao longo das nossas histórias. Na Idade Média e na Renascença, a distração vinha das imagens. O leitor devia se isolar para ler, ou transformar as imagens em texto na própria cabeça. Mas a leitura foi e será sempre uma viagem pelo texto, mesmo que ele seja curto e fragmentado.
O que perde o leitor que devora livros?
Nada. Há diferentes maneiras de ler: Oscar Wilde, por exemplo, era um leitor voraz que percorria as páginas rapidamente e depois se lembrava de tudo. E foi um dos maiores leitores do século 19.
Ainda existe espaço para heróis épicos na literatura contemporânea?
Certamente. O atleta Emil Zátopek, em Correr, de Jean Echenoz, o médico Alexandre Yersin, em Peste& Cólera, de Patrick Deville, Caim, no romance homônimo de José Saramago, são todos heróis épicos.