O verbo mais ardiloso da língua? É o haver. Ele joga em todos os times. Ora tem um significado, ora tem outro. Ora é pessoal, ora impessoal. Ora forma pleonasmo, ora esnoba a redundância. Ora forma expressão que se confunde com outra, ora se revela claro como a água da fonte. Ufa!
Mas, como diz o povo sabido, não há bem que sempre dure, nem mal que nunca se acabe. Há jeitos de domar a indomável criatura. Como? Conhecendo-lhe as manhas. Uma vez dominadas, o verbinho fica manso como o cachorrinho da gente. Quer ver?
Significados
O haver se escreve assim. Mas, dependendo do contexto, multiplica significados. Ele pode ser:
- substantivo. Aí quer dizer bem, riqueza: Na partilha, perdeu metade dos haveres.
- verbo. Ops! O dicionário registra quase 20 acepções. Entre elas, ter, possuir (hei um emprego); obter, conseguir (depois de muita luta, houve o que buscava); considerar, julgar (houveram que era abuso aceitar as exigências do governador); existir (há 20 casas na rua); fazer (havia meses que não falávamos); entender-se, arranjar-se (não sabia que o filho se havia com traficantes). Etc. e tal.
Impessoalidade
O dissílabo inspirou-se em palavras e expressões do povo sabido. Entre elas, mesquinho, sovina, canguinha, muquirana, pão-duro, mão-fechada, mão de vaca, sapo morreu na unha, não dá adeus pra não abrir a mão, não come ovo pra não jogar a casca fora, nada com o Sonrisal na mão, e o efervescente continua seco.
Eureca! Em vez de flexionar-se nas três pessoas (eu, nós; tu, vós; ele, eles), o verbo estacionou em uma. Impessoal, só se conjuga na 3ª pessoa do singular. Ele joga nessa equipe em três ocasiões:
- na acepção de ocorrer: Houve mortes no acidente do monomotor.
- no sentido de existir: Há três casas na rua.
- na contagem de tempo passado: Moro em Brasília há dois anos.
Confusão
Ops! Os homens sentem ódio, raiva. O haver também. Nada lhe desperta os instintos mais bárbaros do que contrariá-lo. Atrevidos o tornam pessoal quando é impessoal. Em vez de “houve distúrbios”, dizem “houveram distúrbios”. Em lugar de “havia casas”, preferem “haviam casas”. Pagam caro. A fúria do verbo desmoraliza reputações e rouba pontos no vestibular, no concurso, no emprego. Valha-nos, Deus!
Pleonasmo
Sem humildade, o haver se sente autossuficiente. Na indicação de tempo, basta o há. Dizer “há dois anos atrás”? Cruz-credo! O atrás sobra. Explica-se. O há indica passado. O atrás também. Xô, pleonasmo! Fique com um ou outro. Assim:
Chegou há duas horas.
Chegou duas horas trás.