Aúltima oportunidade em que estive a sós com Fr. João Benedito foi há dois meses. Era fim de março e eu iria me confessar por ocasião da Semana Santa. Entre os pecados que minha consciência acusava, estavam críticas feitas em relação a meu pároco. Sentei-me no auditório do centro paroquial e aguardei minha vez sem saber quem era o confessor. Chegado meu momento, entrei na sala e avistei o pároco sentado na cadeira do confessor. Ele me saudou com um sorriso suave. Eu o saudei com um sorriso amarelo.
Recuo quatro anos e recordo os dias iniciais de seu retorno de seu exílio em Pádua. Assumia a administração da paróquia e queria um coordenador para a música. Reunimo-nos numa salinha improvisada que acumulava suas coisas trazidas do exterior, entre um cavalete de pintura e uma estante cheia de livros. Com o decurso da conversa ele descobriu que eu sabia italiano. Então levantou-se, apanhou um livro na estante e me entregou. Era a publicação italiana de sua tese doutoral que versava sobre a liturgia. Falamos sobre o belo e como sobre o corpo interage com a oração, temas caros a ele e muito abordados, tanto na tese publicada quanto em suas pregações.
Desde sua chegada, devido ao fato de ser um de seus coordenadores, busquei aproximar-me de sua pregação dirigindo o canto na missa das 19 horas, justamente a que ele costumava presidir. Nelas, provei de sua retórica e erudição ao longo destes anos. Havia dois temas bastante recorrentes em seus pregões que me tocaram especialmente. O primeiro deles eu poderia chamar de “dimensão litúrgica da fé”. O cristão adquire sua fé por meio de sua participação na liturgia. Não se deve esperar concluir uma conversão pessoal para frequentar a missa. De modo contrário, a frequência à missa será o itinerário que formará a fé do novo católico, ou do católico que retorna aos braços da Igreja. Já o segundo tema era a “explicação da Escritura a partir das próprias Escrituras”. Uma espécie de chave hermenêutica para a interpretação bíblica. Aprendi muito com Fr. João Benedito.
Conta-se que Fr. João tinha muita pressa para terminar as obras da basílica, e que isso poderia manifestar a consciência de sua iminente morte. Não sei. Tinha, talvez por característica própria de seu temperamento, um senso agudo de urgência em tudo. Logo que assumi a coordenação da música, acertamos um programa anual de reuniões para os músicos interrompido pela pandemia logo após a primeira delas. Lembro-me de vê-lo, meses depois, externalizar sua frustração pelo tempo perdido com a interrupção das atividades. Dizia que tinha pouco tempo e que já se passava um ano sem poder avançar nos projetos pastorais.
Mesmo sob a “chuva de setas” da pandemia promoveu uma grande festa para celebrar os 40 anos da paróquia. Gostava de pintar e ornou quarenta taus de madeira que eram semanalmente apresentados à comunidade na missa de domingo. Produziu uma arte alusiva à festa, mandou fazer camisetas, determinou a realização de uma solene novena e uma festa social por ocasião de sua conclusão. Sinto-me grato a ele por não deixar passar em branco essa importante data de nossa comunidade mesmo sob as piores circunstâncias.
Impulsionou a pastoral dos coroinhas. Queria mais de cem deles atuando no santuário. O número era impressionante, mas estava perto de ser alcançado por ocasião de sua páscoa. Dizia que sua experiência mais marcante até entrar no seminário foi sua atuação como coroinha e que, por isso, acreditava muito nesse serviço como um caminho de formação na fé das crianças e adolescentes. Minhas filhas pediram para fazer o curso de formação sem serem provocadas por nós e abraçaram o serviço com entusiasmo.
Suas virtudes intelectuais impressionavam mas o que talvez tenha deixado um buraco no espírito de sua comunidade foi o afeto que lhe era próprio. Afeto este que cativou minha família. Guardarei em meu espírito a imagem de minha caçula chorando copiosamente enquanto abraçava com ternura um bonequinho da basílica que ganhara na véspera. Havia recebido horas antes a notícia da inesperada morte do amado reitor.
Era muito arrojado. Há oito anos o território de um novo bairro da capital federal havia sido confiado aos cuidados pastorais dos franciscanos. Bairro este no qual, para se poder instalar um templo religioso, devia-se comprar alguma das poucas e milionárias projeções disponíveis. Valores fora do alcance da arquidiocese. Devia ser negociada a cessão ou doação de algum terreno com o governo do Distrito Federal. Já se havia decidido o patrono da futura capela e as missas ocorriam nos pilotis dos edifícios residenciais. Uma pequena comunidade daquele bairro começava a ser formada, sem se desvincular da matriz. Eu não acreditava no sucesso dessa empreitada mas, na manhã de 4 de maio de 2023, acompanhando a missa matinal, recebi a surpreendente notícia da consumação do ato de doação do terreno. Um milagre que prefigurou a constituição da basílica. Ou teria sido o contrário?
Ah, e sobre contendas civis, lembro-me da questão dos sinos. Fr. João Benedito mandou que soassem a cada hora entre as oito da manhã e seis da tarde. Alguém reclamou e o caso ganhou a mídia. Lembro-me dele sorrindo ao comentar o assunto. Sorriso de vencedor. Os sinos não pararam e dobraram por ocasião da saída de seu cortejo fúnebre. Veni vidi vici.
Por ocasião de minha derradeira confissão com ele, fui deixando o tal pecado de maledicência para o final da lista. Acabados os outros, não tive opção a não ser declarar que havia tecido críticas a um “determinado padre”. Olhou-me enigmaticamente. Teria percebido o não dito? Talvez, identificando uma raiz temperamental comum aos pecados que relatei, falou-me então algo assim: “Muitos santos tinham temperamentos muito fortes, que produziam neles pecados contra os quais lutaram durante todas as suas vidas. Mas vejamos de outra forma: o próprio temperamento era a força motriz de muitas de suas virtudes. Peça ao Espírito Santo para que o ensine a tirar proveito de seu temperamento para uma vida de santidade.” Virou a mesa. Ele era assim.
Ao lado de seu féretro, em sua missa de corpo presente, disse-lhe: “Vá em paz, meu irmão, e interceda agora no céu por nós!”.
Brasília, 18 de maio de 2023.
Silva Filho