Travessia no Eixão

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Crédito: Carlos Vieira/CB/D.A. Press. Brasil. Atravessar o Eixão é sempre uma experiência dramática.

Severino Francisco

No início da década de 1970, quem passasse pelo Eixão de madrugada assistiria a uma cena inimaginável em 2021: grupos de jovens se aglomeravam na faixa central tocando violão, bebendo e fumando, despreocupadamente. Era difícil avistar um carro e, se algum aparecia ao acaso, tinha o cuidado de se desviar dos vultos espectrais da noite brasiliana.

Quando projetou o Eixão, Lucio Costa queria que os caminhões de passagem por Brasília não afetassem o trânsito da cidade. Jamais imaginou que a pista que corta o Plano Piloto de ponta a ponta, no percurso das asas Norte e Sul, seria tomada por um fluxo selvagem, trafegada por uma avalanche de carros em alta velocidade, durante os dias e as noites.

De modo que o simples ato de cruzar aquela pista na condição mortal de pedestre é um acontecimento dramático para os brasilienses. Nicolas Behr fez um poema curto, mas significativo do drama da travessia para visitar a então namorada, que chegou a ser gravado pela Legião Urbana: “Nossa Senhora do Cerrado/Protetora dos pedestres/Que atravessam o Eixão/às 6 h da tarde/Fazei com que eu chegue/São e salvo à casa de Noélia.”

Certa vez, atravessei o Eixão com o meu filho João, que, na época, tinha 5 anos. Ele era impulsivo e estouvado. Tudo corria bem, mas, de repente, no meio da pista, João se desgarrou, abruptamente, da minha mão e disparou rumo ao outro lado, sob a saraivada de carros, que passavam frenéticos, deixando no ar o zunido de vento.

Naquele átimo de segundos, entrei em desespero e esperei o pior. Mas, felizmente e milagrosamente, João chegou ao outro lado da pista ileso. Até hoje quando me lembro da situação me dá um frio na espinha. Apliquei uma bronca memorável no João.

Agradeci a Nossa Senhora do Cerrado a proteção e prometi a mim mesmo que jamais cometeria a insensatez de transpor aquela pista tão perigosa e tão traiçoeira. Porque é muito difícil calcular se dá ou não para passar, os carros vem em uma velocidade excessiva.

Por todas essas razões, o descaso com as passagens subterrâneas é um absurdo que se perpetua ao longo de vários governos. Elas são degradadas, sujas, mal iluminadas, esburacadas, infiltradas, trincadas, malcheirosas e inseguras. Os trabalhadores, estudantes, ciclistas ou caminhantes que passam por lá correm sério risco de serem assaltados. A deterioração das passagens entrou na lista dos problemas (aparentemente) insanáveis e insolúveis da cidade.

Mas é claro que tem solução. Basta convocar os arquitetos, os urbanistas, os engenheiros e os estrategistas de segurança. Ainda bem que a Rede Urbanidade do Ministério Público entrou no circuito para cobrar providências. De bate-pronto, dou uma sugestão: se não puder arrumar todas as passagens, por que não escolher algumas, em pontos estratégicos, promover reformas e prover policiamento?

Há uns três anos, tomei um ônibus no SIG para pagar uma conta na L2 Norte. Desci na W3 Norte e segui até o Eixão para atravessar a pista. Todavia, o fluxo do trânsito era intenso, os carros passavam acelerados. Olhei para o lado e vi uma amoreira carregada de frutinhas maduras.

Catei algumas e comecei a degustar. Fiquei com um gosto vermelho delicioso na boca. Pensei na cena do meu filho e desisti de cruzar o Eixão a pé. Preferi pagar a multa da conta. Colhi mais amoras e voltei para a redação. Quem precisa resolver o problema são as excelências. Tenham piedade de Nossa Senhora do Cerrado.

Severino

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