Severino Francisco
Nos anos 1980 e 1990, inspirado pelos ídolos da juventude Oswald de Andrade, Paulo Francis, Mario Faustino e Torquato Neto, eu descia o sarrafo, instalado na condição de crítico. Adotei o lema de Faustino: “Piedade matou minhas ninfas”.
Eu me achava investido da missão de promover uma operação de saneamento básico na cultura. No ápice da arrogância, participei de um debate sobre poesia brasileira e desferi provocações contra nada mais nada menos do que Carlos Drummond de Andrade. Disse que o genial poeta de Itabira deveria ser tombado pelo Iphan.
A esta altura, indignado com a heresia, um poeta distrital resolveu tomar as dores de Drummond e partiu para cima. Os organizadores do evento seguraram o vate possesso e tentaram me convencer com um argumento forte: o poeta distrital tinha três pontes de safena e não podia se aborrecer. Quase teve um infarto. Mas, ao fim, todos se salvaram sem maiores sequelas. Até o americanófilo Paulo Francis admitiu que, se escrevesse em inglês, Drummond seria reconhecido com o status de maior poeta da segunda metade do século 20.
Ao ler a narrativa infantojuvenil A fabulosa morte do professor de português (Autêntica), de Lourenço Cazarré, me senti tentado a entrar com um processo para cobrar direitos autorais. Com muita verve, Cazarré reconstitui, de forma satírica e sarcástica, episódios de minhas aventuras e desventuras de crítico literário da taba.
Claro que se trata de uma obra de ficção, engenhosa e divertida, que transcende as circunstâncias brasilianas, mas qualquer semelhança com personagens de carne e osso não é mera coincidência. O personagem principal é o crítico literário e professor Severiano Severo, titular da coluna Fogo Cerrado do Correio Popular, implacável com qualquer livro da cidade.
Além de mim, Dona Maria da Anunciação, gente fina, é, obviamente, a inesquecível Maria da Conceição, diretora da Biblioteca da 506 Sul, que já nos deixou. A delicada e premiada escritora de livros infantojuvenis Stela Maris se transforma na grandalhona Strela dos Mares Rainha, que ameaça resolver no braço as pendências culturais com o crítico.
Laurentino Floresta, o dono da extinta Esquina da Palavra, é o jornalista Lourenço Flores: ;Ele era jornalista;, contra o personagem Tédio. “Diz que abandonou a profissão para ficar mais perto dos livros, que adora. Mas não é verdade. Foi expulso pela Comissão de Ética do Sindicato dos Jornalistas. Em dois anos de profissão, sofreu 10 processos por calúnia e difamação.”
Segundo a bem-humorada ficção de Cazarré, alunos queriam mudar de classe, de cidade e de país por minha causa. E os escritores da cidade entravam em estado de choque só de ouvir o meu nome. De minha parte, sempre me diverti imensamente com as polêmicas. Não renego nem abjuro o que escrevi, mas não faria do mesmo jeito, às vezes, tão desatento com o outro.
Assistir ao fim da vida de Paulo Francis, amargurado, frustrado e infeliz, teve impacto em mim. Não quero ser refém do meu personagem. Livrei-me dele. Não importa que eu seja menos do que os meus ídolos da juventude. Dane-se. O que me cabe é ser autêntico, é viver a minha singularidade até o fim, de maneira irreparável, com toda a coragem.
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