Severino Francisco
Gosto conversar com os motoristas de táxi, eles circulam muito, captam informações privilegiadas, sabem o que acontece na cidade. Com sorte, pesco algum assunto para a crônica. Prefiro mais ouvir do que falar. Tento apenas suscitar as histórias. No entanto, um dos motoristas não escondeu o elogio: “Lá, no ponto, a turma diz que com você a prosa é boa”.
Certa vez, tomei um uber, comecei a conversar com a motorista. Ela contou que recebeu uma corrida para Taguatinga, mas, na verdade, era para Sol Nascente. A moça que pediu o carro ficou com medo de a motorista não atender quanto soubesse o destino.
Embrenharam por vielas escuras até a passageira desembarcar. A noite havia caído sobre a cidade. Lá, a motorista teve a nítida impressão de estar em uma favela do Rio de Janeiro. Rolava um funk frenético, homens passeavam nas ruas armados com os revólveres na cintura, os becos se multiplicavam.
A motorista se perdeu no labirinto de ruas esburacadas e teve de pedir ajuda a um colega para sair de lá. Tomou uma tremenda bronca. Perguntei a ela qual era o esquema de segurança que dispunha e ela respondeu: “É Deus”.
Na semana passada, tomei um táxi rumo ao Jardim Botânico, mas a prosa nos levou para o Rio de Janeiro. O motorista falou que, se tivesse oportunidade, gostaria de conhecer, mas sem esconder certo receio por causa da segurança. Contei que eu tinha vários amigos por lá, mas também evitava e argumentava: “Só vou ao Rio com colete à prova de bala e se vocês forem me buscar no aeroporto”.
Quando esteve em Brasília para uma palestra no CCBB, o poeta Armando Freitas Filho, que nos deixou no ano passado, ao ver que eu adentrava o auditório, comentou: “Sou carioca da gema, assim como existe brasiliense que só vai ao Rio com colete à prova de bala e se forem buscá-lo no aeroporto”.
Eu tratava Armando na condição de nosso correspondente de guerra no Rio de Janeiro: “Cada dia é uma bala de roleta russa”, escreveu em um poema. Armando considerava o Rio uma cidade-assaltante, onde a violência poderia irromper da maneira mais abrupta e imprevista, enquanto se caminhava pela rua ou mesmo repousava em casa, irrompendo pela janela.
A certa altura do trajeto, o motorista explicou que daria seta para a esquerda, pois precisaria fazer o balão e pegar a via que nos levaria a nosso destino. Armando também gostava muito de puxar papo com os motoristas de táxi e extraiu deles a frase “sangrando a seta do lado esquerdo”, utilizada em um poema que nos joga no ambiente dramático do Rio de Janeiro.
Meu pai era repentista, tenho memória de cantor de embolada, recordei o poema e, em um átimo, tive a audácia de recitá-lo no calor da hora até para avaliar a capacidade de recepção: “furo o sinal vermelho/que não me estanca/sangrando a seta do lado esquerdo/me enfio por agulhas/gargalos/gargantas/o mar está à margem/tem pressa mas não sai de lugar/engarrafado/enquanto rodo o Rio todo/o corpo não tem férias/passa do ponto/sempre ao alcance de balas além”.
O motorista me levou até o meu destino e disse que, a partir de agora, adotaria a gíria carioca, sempre que fosse dar a seta: “Agora, vou sangrar a seta do lado esquerdo”. Armando, que gostava de conversar com os taxistas e adorava jornal impresso, ficaria feliz se soubesse da história e, mais, se lesse a história em um alto de página. E reivindicaria bravo: “Não esquece de me mandar o jornal!”