O êxtase da música

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Severino Francisco

Eu morei na 705 Norte, não moro mais. Se morasse, com certeza, ouviria o chão tremer com os shows Música Urbana, no Ginário Nilson Nelson, e Alok, na Esplanada dos Ministérios. Não vi, quer dizer, não estava lá, mas assisti a diversos vídeos e ouvi relatos dos repórteres do Correio da celebração musical dos 64 anos de Brasília, que teve momentos arrebatadores. O show Música Urbana foi uma celebração de Brasília, da música e da democracia quando a cidade vive tempos distópicos.

Com a participação da Legião Urbana, de Capital Inicial e da Plebe Rude, o show Música Urbana foi realizado pela última vez em 1984, às vésperas da redemocratização oficial do país, depois de um longo período de trevas do regime de exceção. Aqueles então meninos participaram de muitas manifestações em frente ao Congresso Nacional em defesa da democracia.

Quando a banda silenciou e Dinho insinuou o belíssimo refrão de Primeiros erros, a plateia cantou em uníssono o belo refrão de Primeiros erros, superando até a acústica precária do Ginásio Nilson Nelson: “Se um dia eu pudesse ver/Meu passado inteiro/E fizesse parar de chover/Nos primeiros erros”.

Dinho adaptou a letra de Que país é este?, da Legião Urbana, e cantou: “Vamos faturar um milhão/Quando vendermos todas as almas/dos yanomamis num leilão”. Como se vê, Que país é este? permanece dramaticamente atual. O rock da década de 1980 representa uma Brasília democrática. Em alguns casos, foi uma festa para três gerações de brasilienses, com a presença de avôs, pais e netos.

Alok realizou um espetáculo apoteótico, é um artista de Brasília, do Brasil e do mundo. Mas o que me chamou mais a atenção foi a conexão que estabeleceu entre a alta tecnologia e a ancestralidade indígena. É algo semelhante ao que a banda Sepultura fez na década de 1980.

O futuro é ancestral, título do álbum recém-lançado, não é só uma frase de efeito. Se não respeitarmos as leis da natureza não teremos futuro na perspectiva das mudanças climáticas em curso. A jornalista Eliane Brum escreveu que o centro do mundo não é Nova York, Paris ou Londres; é a Amazônia. É lá que se decidirá o futuro da humanidade. E Alok inventou uma linguagem para que os índios falem ao mundo. Só a arte é capaz de fazer esse pequeno milagre.

Quando escrevi o livro Da poeira à eletricidade – Uma história da música em Brasília (ITS), no aniversário dos 50 anos da cidade, me pediram uma conclusão. Foi boa a provocação, pois me obrigou a pensar. E , em minhas divagações, construi à seguinte formulação: Salvador criou o samba de roda, o trio elétrico e a tropicália. O Rio de Janeiro inventou o choro, o samba e a bossa nova.

Mas isso foi obra de séculos. Nenhuma das duas capitais brasileiras anteriores criaram um acervo tão rico de experiências musicais quanto Brasília em seis décadas. Que capital poderia celebrar o aniversário de 64 anos tendo como atrações principais bandas e artistas de renome nacional e até internacional, como é o caso de Alok?

No entanto, o momento é de celebrar, mas também de cobrar. O Capital Inicial, a Plebe Rude, a Legião Urbana, Zélia Duncan e Alok são famosos hoje, mas já foram artistas amadores em busca de espaço e estímulo. Os nossos espaços culturais estão detonados.

Infelizmente, a cultura não é prioridade. E deveria ser, pois Brasília é uma cidade construída por artistas e, como vimos (mais uma vez) na celebração dos 64 anos da cidade, é a cultura quem confere dignidade a Brasília. A música lavou nossa alma. Brasília pode ser absurda, mas tem uma ouvido musical que não é normal.

Severino

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