Severino Francisco
Como se sabe, eu sou um usuário; não disso que vocês estão pensando, mas do transporte público do DF. Todos os dias, tomava ônibus bem cedo. Quando a alvorada brasiliense despontava no horizonte, me deparava com uma senhora vendendo café e bolo na parada. No início, ela passou desapercebida, como se fizesse parte da paisagem urbana.
No entanto, um detalhe despertou a minha atenção. Ela montou uma extensão da mesa onde servia lanches para que as duas filhas, uma talvez de 6 anos e outra de 8, fizessem os deveres da escola. As meninas garatujavam nos cadernos sob a vista exigente da senhora. A mãe era uma mulher do povo, na faixa dos 40 anos, mestiça, austera, empertigada, elegante, altiva, mas serena.
Estava vestida de maneira impecável, imaculadamente branca, portava luvas e turbante para prender os cabelos. Imaginei que teria feito cursos de formação profissional, pois, apesar de vender quitutes em uma banca improvisada, fazia tudo com extremo esmero. Servia café e bolo para os clientes com presteza, sem jogar conversa fora.
Era concentrada, não desperdiçava palavras ou gestos. Ficava atenta, simultaneamente, ao movimento dos chegantes e ao das filhas que escreviam em cadernos na mesa ao lado. Fiscalizava cada detalhes com um olhar severo. De vez em quando, dava alguma bronca concisa nas meninas, conclamando-as à seriedade nas tarefas escolares. Encarnava autoridade e dignidade em cada gesto.
Acompanhei a cena durante alguns dias. Tive o impulso de conversar com ela e manifestar a minha admiração. Porém, considerei despropositada a intenção e permaneci em meu canto. Mas, de repente, aquela senhora sumiu e outra ocupou a parada.
Prezada senhora, não sei o seu nome, nada conheço de sua vida, onde morava. No entanto, gostaria de lhe dizer algumas palavras. Fiquei profundamente comovido com a sua iniciativa de conceber uma extensão da mesa para que as suas filhas estudassem em frente à parada de ônibus.
A senhora tem inteira razão na atitude; só a educação pode superar o estado de miséria econômica, política, cultural, moral e espiritual em que estamos mergulhados. Apenas os governantes não sabem ou fingem não saber dessa obviedade. A sua bravura é admirável. Para mim, a senhora é muito mais valente do que uma lutadora de MMA. Mata um leão por dia, enquanto muitas têm tudo e ainda reclamam da vida.
A sua tenacidade é capaz de mover montanhas de empecilhos. Talvez não saiba, mas a senhora é uma pessoa verdadeiramente nobre, segundo a insuspeita escala do padre Antonio Vieira, para quem a legítima fidalguia são as nossas ações.
A senhora tem razão em ser brava, uma bondade boazinha não sobrevive nesse mundo cão. Nunca mais a vi. A senhora esvaiu-se no vazio de Brasília. No entanto, jamais a esqueci. A bondade me estraçalha.