Jardineiro cósmico

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Severino Francisco

Cada vez fico mais impressionado e enlevado com a obra e as ideias de Burle Marx. Ele fica a cada dia mais atual pela consciência que tinha do meio ambiente. É pena que ele não tenha tido uma participação ainda mais ampla na construção de Brasília.

Burle concebeu um plano paisagístico para Brasília, mas que não se realizou e se perdeu. Mesmo assim, deixa a marca do talento no Palácio do Itamaraty, no Teatro Nacional, no Templo da Boa Vontade, no Hospital Sarah, no Palácio da Justiça, entre outros edifícios.

O Itamaraty é o meu prédio preferido pelo equilíbrio alcançado entre a arquitetura de Oscar Niemeyer, a integração com a arte e os jardins de Burle Marx. No interior do Palácio, a gente tem a impressão de cair, abruptamente, em uma selva amazônica.

Mas os jardins internos do Teatro Nacional também são primorosos. E, com certeza, precisarão ser restaurados com a reforma anunciada pela Secretaria de Cultura. Vi, recentemente, no Canal Brasil, o documentário Filme paisagem, dirigido por João Vargas Penhas. A trilha e a montagem proporcionam uma experiência de êxtase no contato com as plantas e as ideias de Burle.

Artista plástico, botânico, pesquisador e paisagista experimental, Burle deflagrou uma revolução ao inserir plantas nativas em praças do Recife, entre 1934 e 1937: cactos, vitórias-régias, palmeiras e coqueiros. Ele foi demitido por usar canas vermelhas nos jardins aquáticos de Casa Forte, tidas como subversivas.

Um dos momentos mais pungentes do documentário acontece quando Burle anuncia, de maneira profética, o receio de que viveríamos tempos sombrios em relação ao meio ambiente no Brasil. A data da afirmação não é mencionada, mas, só para termos uma referência, ele morreu em 1994.

Em uma viagem à Amazônia, Burle ficou estarrecido com a magnitude e o horror do desmatamento. Aponta para uma árvore gigantesca derrubada e comenta, desolado: “Essa árvore jamais poderia ser destruída. Constroem uma estrada e colocam uma placa no lugar. A árvore era um monumento vivo”.

Se estivesse vivo, ficaria estarrecido com a tragédia da devastação na Amazônia, na Mata Atlântica e no Cerrado. Ele via as plantas como manifestações divinas. Deus seria uma espécie de jardineiro cósmico a criar as mais misteriosas alquimias vegetais de extraordinária beleza. E tudo isso está sendo destruído pela ambição rasa associada à ignorância, como mostram as pesquisas recentes sobre o desmatamento nas florestas brasileiras.

Ver o filme sobre o Burle me fez muito bem à alma, pois estamos expostos a todas as mazelas da ignorância. É necessário buscar inspiração e luz nos mestres. O momento de acordar é agora, com a COP29, que será realizada neste 2024 em Belém do Pará, pois não haverá uma segunda

chance para o planeta.

Como berra o Kristo Negro, interpretado por Antonio Pitanga, em A Idade da Terra, de Glauber Rocha, para ninguém no descampado do Cerrado, atrás do Palácio do Planalto: “Acorda, humanidade! Acorda, humanidade!”

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