Dida e Orlando

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Severino Francisco

Com agudeza, Renato Russo dizia que a maioria dos forasteiros imaginava que os brasilienses trombavam com o presidente da República ou com as excelências parlamentares a cada passo. Mas, de fato, a Esplanada dos Ministérios e o conjunto de palácios era um outro mundo, fisicamente próximo, no entanto, tão distante quanto o castelo da ficção de Kafka.

E, realmente, poucos conhecem os segredos daquelas paragens de uma outra Brasília. Nas últimas semanas, perdemos dois grandes fotojornalistas, que sabiam transitar pelos caminhos, os bastidores, os desvãos e os labirinto do poder: Dida Sampaio e Orlando Brito.

Acompanhei o início da carreira de Dida, na década de 1990. Da mesma maneira que muitos outros fotógrafos, ele veio do laboratório do jornal. Logo, se destacou pelo talento e pela audácia. Era um menino cearense baixinho e magrinho, mas concentrado, tenaz, inquieto e bravo.

Devia ter uns 20 anos, nesta época. Para ele, a pauta era uma missão a ser cumprida a qualquer preço. Subia em cima de um caminhão, convencia os policiais, furava os bloqueios, mas sempre trazia ótimas fotos, que, muitas vezes, provocavam a mudança completa da edição. A qualidade forçava a primazia para as imagens.

Nesta longa estrada da vida jornalística, nossos caminhos tomaram rumos diferentes e perdi Dida Sampaio de vista. De repente, li a notícia de sua morte. Olhei para a foto publicada no jornal e não reconheci, fisicamente, o menino arrojado que eu havia conhecido.

Mas, ao ler os depoimentos dos amigos, constatei que Dida nunca deixou de ser um menino afetuoso, simpático e destemido. Ele é um dos jornalistas que foram agredidos por fanáticos em uma manifestação de apoio ao presidente. Sempre estava presente no coração dos acontecimentos.

Luis Humberto foi um mestre e criou uma tradição de fotojornalismo político brasiliense. Mas se as suas fotos sobre as cenas do poder da capital pareciam cartuns, tamanha a irreverência, as fotos de Orlando Brito se distinguem pelo caráter dramático e pela capacidade de captar imagens que sintetizam momentos cruciais da história brasileira.

Com instinto de repórter, ele pegava no ar e revelava o sentido, muitas vezes, oculto ou ocultado pelos personagens do poder. Ficava à espreita do átimo daquela fração de segundos em que tudo se desvelava. E, por isso, produziu imagens clássicas, sem as quais não é possível contar a história brasileira a partir da ditadura militar nas últimas décadas.

É o caso da foto da dança das cadeiras, em que João Figueiredo, Golbery do Couto e Silva, Delfim Neto e Newton Cruz se preparam para uma reunião. Ou a que Ulysses Guimarães aparece sob o fundo da solidão espacial da Esplanada, com a silhueta do Congresso Nacional ao Fundo. Ou a que revela o desconforto entre Dilma e Temer em meio a um encontro protocolar. Orlando era muito brasiliense, chegou à cidade, com o pai, em 1957, viu Brasília nascer e crescer.

Nunca parou de fotografar. Durante a pandemia, circulava pela Esplanada, com a câmara na mão, registrando a solidão ou a presença de algum passante. Era crítico ao poder, mas elegante. Registrou e transcendeu o registro com um olhar estético e humanista. Dida e Orlando foram dois fotógrafos que dignificaram o jornalismo.

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