Celebração do amor

Publicado em Crônicas
Crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press. Nicolas Behr e Maria Alcina Ramalho: amor de salvação.

 

Severino Francisco

 

Não importa que o Dia dos Namorados tenha sido ontem. As coisas boas da vida merecem ser celebradas todos os dias, principalmente neste momento em que somos assolados pelos adoradores da morte. Por isso, peço licença para tocar no delicado tema, que segundo o poeta, move o céu e as outras estrelas. Mas eu queria falar daquela espécie de namoro que se alonga em amor, em casamento e em cumplicidade; e se depura ao longo dos anos.

 

É esse o caso do poeta Nicolas Behr e da sua mulher e musa. Ele faz uma declaração de amor rasgada a ela no livro Alcina, (sim, revisão, com vírgula). O nome da musa está escancarado em letras garrafais no título; e a fotos de Alcina e de Behr repontam no fim do belo texto da orelha, assinado por Ana Miranda. Mas que ninguém espere a superexposição do BBB.

 

Behr se esquiva, a todo momento, do mero exibicionismo, com fintas modernistas desconcertantes de humor, como se fosse um Garrincha candango de pernas tortas: “se eu te amasse/ escreveria poemas/pra você/se eu te amasse/reuniria os poemas em um livro/se eu te amasse/o título do livro teria o teu nome”, escreve o poeta para apresentar o livro Alcina,.

 

O romantismo de Behr é gauche, excêntrico e torto. No entanto, a figura da musa paira, explícita ou implícita em todas as situações: “E ela, a deusa,/se fez carne/e a sua carne me habita”. Não idealiza nada, mas arranca a poesia das situações mais triviais: “Aprendi com Alcina/que casar/é deixar de sofrer sozinho/para sofrer junto”.

 

É uma declaração de amor, mas oblíqua e dissimulada. Os poemas colocam em cena a vida cotidiana de um casal, com a luta pela sobrevivência, os encontros, os desencontros, os momentos de intimidade e os embates das diferenças entre homem e mulher.

 

Vários poemas tem uma estrutura de diálogo dramático: “Niki, vem pra cama/não posso/estou escrevendo/um poema erótico para você”. Alcina não é uma musa passiva; é uma musa ativa, que confronta e provoca uma reflexão no poeta: “Eu não sou só buracos”.

 

Tudo é perpassado por um fio de humor, ironia e autoironia deliciosos. O amor se mistura com o humor de maneira indivisível: “O meu amor/por ti acabou/a indiferença domina/o descuido impera/grassa a má vontade/cada um procura/um novo amor/que tal o meu?”.

 

No início de sua carreira de poeta, critiquei duramente a ele e a sua geração. Agradava-me a linguagem brutalista extraída da fala cotidiana, mas me irritava o culto da ignorância de algumas vertentes da poesia marginal. Behr afirma que o poeta Francisco Alvim alfabetizou a poesia marginal.

Não sei, pode ser, Chico deve ter alertado que a linguagem coloquial de Oswald de Andrade, de Manuel Bandeira e de Carlos Drummond é uma tecnologia muito sofisticada. Behr é um poeta instintivo, intuitivo e espontâneo. Mas a poesia dele se depurou; da precariedade, fez uma força.

 

O uso do humor se decantou e superou uma fase inicial de poema-piada para se tornar um elemento lírico essencial da poesia. Eu me arriscaria a dizer que Behr ocupa um lugar de destaque na poesia brasileira atual pela incorporação cada vez mais esmerada do humor: “Sofisticar o poema/enfeitar o poema/o amor não quer/amor não quer/poema floreado/quer flores”.

 

Na verdade, ao falar de Alcina, Behr fala sobre o amor. É uma relação entre seres imperfeitos, humanos, demasiados humanos, como somos todos nós. Mas, na sua imperfeição, ela eleva e desperta a perfeição do amor. Em um mundo conturbado, Behr produz uma poesia feliz, não pela alienação acrítica, mas pela alegria do amor, pela alegria de um amor de salvação: “Não preciso da poesia/tenho Alcina/estamos aqui para fazermos/felizes aqueles que amamos”.

 

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