Celebração de Hugo Rodas

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Crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A.PRESS

O velório de Hugo Rodas parecia uma performance dionisíaca comandada pelo próprio diretor

Severino Francisco

Não pude ir ao velório do Hugo porque estou no plantão da Semana Santa. Mas, mesmo de longe, a energia do ritual dionisíaco de despedida do nosso bruxo emérito do teatro reverberou na redação. A estagiária pautada para cobrir o evento voltou do Teatro Galpão em transe. Nunca havia visto nenhum velório igual, com música, dança, êxtase e afeto.  Hugo só acreditava nos deuses que soubessem dançar.

Eu havia marcado uma entrevista com o professor José Carlos Coutinho para um caderno especial sobre o aniversário de Brasília e não consegui contato. Logo imaginei que ele estaria lá, esse era um momento imperdível.  E acertei. O Teatro Galpão estava cheio de brasilienses de todas as idades e havia mais gente lá fora. Rolou a mesma energia irresistível que se irradiava dos espetáculos de Hugo Rodas.

Você poderia gostar ou odiar, ficar indiferente, jamais. Hugo Rodas era a utopia de Brasília da cabeça aos sapatos. Mas, sem sessão nostalgia, era um pioneiro sempre ligado no presente e no futuro.

Em 2019, pouco antes da pandemia, Hugo fez 80 anos e nos brindou com dois presentes: as montagens de O rinoceronte, e a remontagem de Os saltimbancos. A primeira manifesta a santa indignação contra a estupidez reinante; e a segunda celebra a alegria essencial da solidariedade. Hugo transformou a ambas em peças de dramática atualidade.

Sempre imaginei o fim do pesadelo político e da pandemia celebrado com a encenação de Os saltimbancos no Teatro Galpão. Quando assisti a peça, desejei que toda Brasília estivesse ali para ver. Fica a sugestão para o Bartô, era preciso que essa peça circulasse por todas as escolas do DF.

Zuenir Ventura escreveu que o câncer é uma doença humilhante, mas, com o desejo insaciável de viver, Darcy foi a única pessoa que humilhou o câncer porque desrespeitou todos os protocolos, comeu uma feijoada e se dedicou a escrever  o livro O povo brasileiro, o seu último legado. Pois bem, tenho a impressão de que o velório, dirigido, de maneira invisível, por Hugo Rodas, se não humilhou, transcendeu o câncer.

Foi uma demonstração de uma fé na arte capaz de abalar montanhas de ceticismo. Sim, quem parte é amor de alguém, como disse Hugo em espetáculo na Esplanada dos Ministérios para responder à indiferença dos governantes ante às mortes da pandemia. Hugo teve uma vida bela, plena de invenção, de realização e de afeto. Sempre trabalhou com gente jovem e deixa muitos que beberam em sua fonte para dar sequência ao legado.

Quem esteve no Teatro Galpão e, mesmo quem não esteve, recebeu um jato de tragicidade, dramaticidade, eletricidade, afeto e alegria. O ritual dionisíaco do velório de Hugo Rodas nos libertou da dor da perda e liberou o nosso bruxo emérito para alçar outros voos, embora ninguém soubesse, ao certo, se estava alegre ou triste.

O velório-festa para Hugo só pode ser comparado à Maria Lucia Godoy cantando as bachianas de Vila-Lobos e jogando uma chuva de  pétalas no rosto de Glauber Rocha na última despedida quando o seu corpo jazia no caixão ou à bateria da Aruc tocando Quero morrer numa batucada de bamba no Museu da República no sarau de sétimo dia de Reynaldo Jardim. Hugo partiu com teatro cheio, envolvido pelo afeto, pela música, pela dança e pela beleza.

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