As armas do humor

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Severino Francisco

Só o desejo de servidão voluntária pode explicar o apoio dos que clamam pela volta de uma ditadura, enrolados em uma bandeira. É um fenômeno a ser estudado, seriamente, pelos cientistas sociais e, principalmente, pelos psiquiatras. Agora, nós temos alguns memes hilários, que desmontam as insanidades dos autocratas de plantão, mas essas peças de humor efêmero das redes se perdem na nuvem virtual.

Falta um Pasquim para espicaçar o arbítrio de suas excelências. Quem aliviou o sufoco do regime de exceção de 1964 foi o hebdomadário editado por um time de jornalistas extremamente talentosos. As balas e bombas de efeito hilariante disparadas por aquela turma de guerrilheiros do humor fizeram mais estragos no regime despótico do que qualquer tiro de fuzil.

Na virada dos anos 1970, todas as semanas eu ia até a Banca da Rodoviária para comprar o Pasquim. Era um prazer indizível esperar a surpresa que o jornaleco desabusado trazia, muitas vezes, em linguagem cifrada, mas perfeitamente decodificável pelos leitores-cúmplices: “Quem tem jornal tem medo”.

No fim da ditadura, o general João Baptista Figueiredo, o último dos presidentes impostos pelo regime militar, provocou polêmica ao afirmar, perto da baia de cavalos, que ele tanto apreciava: “Prefiro cheiro de cavalo a cheiro de povo”. Três dias depois, o Pasquim estampava uma enorme foto de Sua Excelência ao lado dos animais, com a seguinte legenda: “Figueiredo e o cavalo. O cavalo é o da direita”.

Nos tempos em que lecionava em uma faculdade, evoquei o episódio para ilustrar o argumento de que o regime militar liquidou com a guerrilha política em seis meses, mas não conseguiu exterminar o humor libertário do Pasquim. Todos se divertiam muito com a blague, menos um rapaz sério e educado.

Levantou o braço e pediu a palavra: “Professor, eu sou sobrinho do general Figueiredo”. Fiquei paralisado de constrangimento, mas ele acrescentou: “Foi bom tocar no assunto, pois a minha família sempre tenta desfazer o equívoco da frase”.

A turma era gaiata e rechaçou as alegações do colega com muita verve. Animei-me a ponderar que o tio dele, com certeza, era uma pessoa honrada, mas nos inspirava receio, tanto que, na época, repetíamos o refrão: “Quem tem jornal tem medo, estamos com Figueiredo”.

O melhor documentário sobre o jornal foi realizado em Brasília, sob o título A subversão pelo humor, com direção de Roberto Stefanelli. Lá, é possível apreciar deliciosas histórias dos jornalistas boêmios que, sem saber, promoveram uma pequena revolução na imprensa brasileira. Vamos a elas.

Sérgio Augusto, um dos craques do Pasquim, recebeu um telefonema de Brasília. Passou para o cartunista Jaguar, que ouviu tudo, desligou e sentenciou: “Estamos lascados!” “O que foi?”, perguntou Sérgio, assustado. “Acabou a censura”, respondeu Jaguar.

Paulo Francis foi convocado para interrogatório em um quartel. Um coronel acusava o polêmico e irascível jornalista de ter supostamente assinado uma monção de protesto contra a prisão arbitrária do dono da Editora Civilização Brasileira, Ênio da Silveira. Francis negou veementemente. O coronel irritou-se argumentando que tinha nas mãos uma cópia do documento assinado por Francis.

Ao que o jornalista replicou com o célebre ar superior sobre o restante da humanidade: “Coronel, eu não assinei nenhuma monção; monção é um fenômeno atmosférico. O que assinei foi uma moção de protesto contra a prisão do meu amigo Ênio da Silveira.”

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