A Feira da Torre de TV

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Severino Francisco

Sempre gostei do clima de bagunça organizada das feiras populares. Fui um frequentador assíduo da Torre de TV até ela ser reformada. As atrações eram múltiplas. Aos fins de semana, ia lá para soltar pipa com o meu filho. Bastava estar ali para espairecer com a contemplação da paisagem, com as comidas regionais e com a mistura de gente brasiliense.

Lá, é possível encontrar as garrafinhas de areia coloridas, trazidas por Ferreira Gullar, de São Luís do Maranhão, nos tempos em que o poeta ocupou o cargo de primeiro diretor da Fundação Cultural do DF. Comprei na feira um dedobol artesanal, aquele joguinho em que os jogadores são representados por pregos, com uma moedinha funcionando como bola. O presente era para as crianças, mas fez o maior sucesso também com os adultos, provocou disputadas acirradas, acusações de roubo, gozações, comemorações espalhafatosas e rivalidades eternas.

Certa vez, usei um sapato que me apertava um pouco e, de repente, me dei conta de que tinha se formado um tremendo calo no dedo mínimo do pé. Não conseguia mais calçar sapato sem sentir uma dor terrível.

Na época, havia me mudado para um condomínio horizontal, construía a casa, vendi o carro para comprar o telhado e, todos os dias, tomava um ônibus e caminhava cerca de três quilômetros no trajeto de volta. Procurei, em vão, nas lojas de calçados, uma alpercata sertaneja, robusta, mas que deixasse, a um só tempo, protegido e livre o dedo mínimo.

No entanto, recorri à Feira da Torre e encontrei na banca de um artesão nordestino de couro uma alpercata talhada precisamente para a minha situação. Era muito resistente, tinha solado de pneu, aguentou o tranco firme e funcionou plenamente. Ao fim de uns seis meses, protegido pelo rústico calçado, o meu calo caiu e pude retomar os sapatos. Vale dizer que a alpercata ainda durou depois de várias décadas de uso.

Bem antes da pandemia, deixei de frequentar a Torre. Acho que aquela reforma que fizeram, desfazendo a antiga estrutura informal, com a mudança para bancas internas, empobreceu muito o fervilhar urbano e humano dos fins de semana. Perdeu o ar de bagunça organizada e de surpresa, que eram a alma da feira.

A alegação foi a de que a antiga feira prejudicava a fruição estética do monumento, um dos dois projetos arquitetônicos de Lucio Costa em Brasília; o outro é a Rodoviária. Ambos são maltratados. Não se justifica o argumento de que o burburinho da feira atrapalhava a percepção da beleza arquitetônica. Pelo contrário: humanizava aquele espaço.

O arquiteto Frederico Holanda acompanhou e documentou as mudanças na Torre de TV ao longo de muitos anos. Ela continua a ser um lugar muito frequentado. Mas, depois da intervenção desrrazoada, para mim, perdeu muito o encanto de festa semanal dos estados, onde muitas coisas imprevisíveis poderiam acontecer.

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