Tiago Ferro fala de luto sem clichês em “O pai da menina morta”. Veja a resenha

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O pai da menina morta não é um livro autobiográfico. O autor, Tiago Ferro, publicou o relato sobre a morte de sua filha de 8 anos em 2016. Foi um belo e corajoso texto sobre o luto e Ferro achou que poderia continuá-lo quando embarcou em O pai da menina morta, em maio de 2017, um ano após a morte de Manuela. Mas o livro tomou outro rumo. Se tornou uma resposta a um momento em que a parte mais dura do luto estava encerrada, aquela em que a vida retoma e é preciso ressignificar o cotidiano para continuar encarando o mundo. E o negócio é que Tiago Ferro não faz isso de uma maneira banal. E muito menos com clichês.

O pai da menina morta é um livro experimental, não-linear, já que linearidade não condiz com o vaivém dos sentimentos, e uma das melhores coisas publicadas na literatura brasileira contemporânea neste primeiro semestre. Preste atenção nas listas de prêmios literários que vêm por aí, porque o romance de Ferro vai estar em uma delas.

O autor começou a escrever em forma de diário. Aos poucos, abandonou o formato e se libertou das estruturas, experimentou registros de memória, embaralhou um pouco o texto e a narrativa tradicional ficou para trás. Felizmente. E-mails, listas, cartas, verbetes foram incluídos, assim como trechos do suposto diário. Até fotografias aparecem na narrativa. Não há como não associar essa desorganização, essa sobreposição de relatos, de descrições de sensações, de busca de sentido em significados de palavras e expressões ao próprio luto. Esse processo não tem fórmula, sequência lógica ou estratégia de superação capaz de dar conta do vivido. Nem o romance de Ferro.

No livro, um pai perde uma filha. Uma criança. É pai de outra menina, casado. Há muitas semelhanças com a trajetória do autor. E há, principalmente, uma tentativa de reorganizar os sentidos que fica muito clara nas ações do personagem. “Eu não quero ser O Pai da Menina Morta. Eu sempre serei O Pai da Menina Morta. Não estou procurando ou exigindo qualquer tipo de justiça. Eu simplesmente aceito a dor aguda na ausência. No vazio. Nós também somos feitos de espaços em branco. Nosso corpo não é uma massa densa. É preciso lembrar disso”, avisa.

Esse narrador não aceita respostas fáceis, prontas, embaladas. Ele não quer chegar a nenhum ponto específico. Poderia encontrar um certo conforto, um assentamento, na religião, mas essa não satisfaz. Ou no sexo, quando desenvolve uma certa obsessão pela professora de yoga, mas também não aceita esse caminho como um fim. E envereda por várias possibilidades, pela cultura, pela política, pela amizade. Mas ele está sempre desconfiado, de si mesmo e dos outros. Ao invés de respostas, coloca perguntas.

O Pai da menina morta é um livro sobre reinvenção constante, sobre estranhamento, sobre ser jogado em um mundo no qual é preciso reaprender, e esse é o ponto em que a sobrevivência se torna possível para o narrador. É um romance impactante, difícil de ler, mas de imediata empatia, aquela faculdade imprescindível para a literatura e para a vida.

Entrevista: Tiago Ferro

É tão difícil falar sobre ou viver o luto…Quando você fragmenta, ele ganha outro sentido?

Difícil avaliar nesse sentido de como reflete a minha própria experiência do luto. Acho que essa fragmentação responde mais a uma experiência menos clichê do que seria o luto, porque não é só dor, ou só tragédia. A vida vai se reconectando aos poucos e em momentos que não são os esperados. O livro trabalha um pouco com isso. A memória passa filtrada por essa tragédia e continua aparecendo e acionando questões que não são só da perda e da busca de sentido. Acho que essa fragmentação sai um pouco do que as pessoas esperam de uma narrativa do luto que seria só a dor, o sofrimento, a incapacidade de querer continuar a fazer as coisas que vinham sendo feitas. Acho que é isso. Passa a ser um ponto um pouco fora do tempo e do espaço.

É uma ressignificação também?

Sim, sem dúvida. Acho que o livro trata principalmente disso, de sair e ser jogado pra fora e depois essa tentativa de buscar um lugar em que você começa a ver tudo de uma forma estranhada. Acho que o narrador acaba sendo uma espécie de uma ideia de literatura a partir de um momento que ele não se satisfaz com respostas, ele segue colocando perguntas e não interrompe esse fluxo até o fim do livro, ele segue questionando.

Na época da morte da sua filha você postou nas redes e teve uma exposição pública que você fez questão de ter. Por quê?

Na verdade, a exposição pública aconteceu um passo antes de eu também fazê-la. Como era uma menina de classe média que tinha acesso a tudo, saúde, educação, não tinha nenhuma limitação nesse sentido, e morreu de gripe, todo mundo ficou chocado porque saía um pouco da estatística. E de repente, no primeiro dia, eu vi o print da minha página no Facebook no jornal falando “menina morre de gripe”. Aquilo me motivou a querer tomar a rédea dessa divulgação, de querer falar que ela não era uma estatística, que era uma menina específica, minha filha, etc. E hoje consigo perceber como a escrita fez parte de todo esse processo. Primeiro no Facebook, depois escrevi um texto para ser lido na missa de sétimo dia, e hoje nem imagino como consegui fazer aquilo, e logo na sequência escrevi o texto da Piauí, que era sobre minha experiência e da minha mulher depois da morte dela. O livro já é uma reflexão dessa experiência toda, sem a preocupação biográfica. Escrever, de alguma forma, pontuou alguns momentos dessa experiência sem que, naquele momento, eu pudesse avaliar o porquê daquele tipo de escrita e daquela atitude. O sentido foi sempre sendo dado depois, mas a escrita fez parte do processo todo.

Por que acha que o livro está tendo tanta repercussão?

É uma combinação. Tem um interesse pela história, porque ela teve uma exposição, e ao mesmo tempo começam a surgir leituras e uma repercussão que responde ao livro como forma literária independente do que eu vivi. Muita gente passa por tragédia, isso não é uma novidade, então o fato em si não justificaria o livro ter ou não uma repercussão ou ser ou não bem avaliado. Tem que funcionar como forma literária.

E como você encara essa literatura que nasce da tragédia, que é também um gênero dentro da literatura?

É uma literatura sempre limite, principalmente hoje, na nossa realidade imediata, no Brasil. Com toda violência e todo o absurdo que a gente vive, a morte virou um tabu mais do que nunca, as pessoas têm que seguir ativas, trabalhando, consumindo, gastando até o fim. Acho que trazer o tema da morte escancarado, tá no título, também é uma forma de se enfrentar esse tabus que vão se estabelecendo um pouco por conta desse domínio de uma sociedade de consumo, de uma sociedade que tem que estar feliz o tempo todo e na qual qualquer tristeza é tratada com antidepressivos. Essas experiências vão ficando um pouco arredias, mas estão aí a todo momento. O livro trata de um assunto que começa a ser visto de forma menos natural no mundo contemporâneo, o que é esquisito porque é um mundo de confronto, violência e muita tragédia. Por isso eu digo que perder um filho não é uma novidade, a questão é como narrar essa história, como transformar em forma literária. Esse tipo de literatura, de forma geral, responde a uma tentativa da nossa sociedade de recalcar esses temas, de não lidar. E o livro expõe isso de forma direta e sem filtro.

O pai da menina morta

De Tiago ferro. Todavia, 174 páginas. R$ 44,90

Nahima Maciel

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