O seriado que adaptou a história de June, a aia do romance, uma mulher presa em um cenário surreal nos Estados Unidos contemporâneo, levou para casa os Emmys de melhor série dramática, atriz, atriz convidada, atriz coadjuvante, roteiro e direção. Conquistou público e júri por uma boa razão: a história de Atwood é extremamente envolvente. E como a série não tem previsão de ser lançada no Brasil, fica o livro, recentemente reeditado pela Rocco. O conto da aia é daquelas leituras que sequestram o leitor. Difícil largar antes de chegar à última página.
Atwood tem uma escrita seca e direta e isso ajuda a tornar o drama de June ainda mais pungente. Quando o livro tem início, a personagem já faz parte de uma engrenagem perversa. Transformado em república fundamentalista católica, os Estados Unidos estão dominados por homens. As mulheres perderam os direitos civis, não podem andar sozinhas, não ocupam cargos políticos e nem têm qualquer relevância para além da porta de casa. Por alguma razão inexplicável – há apenas uma insinuação de algum desequilíbrio ambiental ligado a agrotóxicos -, as taxas de natalidade caíram a quase zero. As poucas mulheres que ainda podem ter filhos são capturadas e colocadas à disposição dos comandantes do regime, que se apropriam de uma passagem bíblica para justificar os estupros necessários à concepção. Chamadas de aias, essas mulheres são controladas e violentadas constantemente.
June é uma aia que, antes da catástrofe, tinha uma filha e um marido. Capturada, perde o nome, como todas as suas companheiras, para ganhar um patronímico do comandante que a possui. Nem sempre é o mesmo, uma vez que, ao engravidar e dar à luz, a aia passa para o próximo dono. A história narrada no seriado é bastante fiel ao livro, embora haja algumas pequenas licenças na construção dos personagens. A série entrega mais do que o livro. Na escrita de Atwood, não há muito espaço para explicações lógicas sobre os fatos que levaram o país à situação de radicalismo no qual se encontra. June é mais passiva no romance e não foi à toa que Elisabeth Moss ganhou o Emmy de melhor atriz: sua June é mais combativa, mais consistente e menos submissa que a personagem de Atwood. Mas há motivos para isso.
Narrado em primeira pessoa, o texto emerge exclusivamente das percepções da personagem, que tenta lidar com a violência de uma maneira a não se anular. June precisa sobreviver e, para isso, precisa encontrar explicações às quais se ancorar. Em uma das passagens mais violentas do romance, ela tenta descrever para si mesma o momento do estupro, que ocorre todo mês, no período da ovulação. June não consegue dar ao ato o nome que lhe é próprio e escapa por subterfúgios para contornar a agressão. Não é sexo nem amor, disso ela tem certeza. Mas também não aceita a palavra estupro, já que, acredita, está ali porque escolheu. A morte seria a outra opção. E, para ela, não é uma opção viável, embora esteja claro que poucas coisas ali dependam do livre arbítrio.
Muitas personagens do livro se fundem em uma só na série e é ao final que o leitor se depara com o trecho mais curioso e misterioso do romance: um capítulo à parte, muitas vezes confundido com posfácio, traz o texto de uma conferência na qual um suposto cientista fala de manuscritos deixados pelas aias e cuja autenticidade é questionável. Paro por aqui para não incorrer em spoilers, mas o romance deixa para o leitor e para os produtores da série o melhor gancho possível: há um mundo de possibilidades caso se invista em uma continuação. E The handmaid’s tale, a série, já tem garantida a segunda temporada.
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