Rupi é originária do Punjab, região do norte da Índia, bem na fronteira com o Paquistão, uma zona de conflitos históricos e violentos. Ela também é sikh, uma etnia massacrada e perseguida. E claro, é mulher. No prefácio, faz uma rápida autobiografia e conta que venceu a primeira batalha quando sobreviveu ao próprio nascimento. Feticídio de meninas é prática comum em algumas famílias indianas. Filha de refugiado sikh que emigrou para o Canadá para fugir do genocídio, ela deixou a Índia aos três anos para encontrar o pai em Montreal. Adolescente, sentiu enorme necessidade de escrever em punjabi, língua cuja a escrita, o gurmukhi, tem como única pontuação o ponto final. Por isso os versos de Rupi não têm maiúsculas nem qualquer outra pontuação.
A necessidade de escrever veio porque ela percebeu que os traumas vão além das fronteiras do tempo. A infância de Rupi pode não ter sido das mais traumáticas, mas uma quantidade enorme de gerações anteriores enfrentaram a dor de não terem direito sobre o próprio corpo. “Eu penso na violência sexual que sofremos como mulheres sul-asiáticas. Nós a conhecemos intimamente, das centenas de anos de desonra e de opressão”, escreve. “Nos ensinam que nosso corpo não é nossa propriedade. Serve para seguir as ordens de nossos pais até que eles transfiram a propriedade ao seu marido e a sua família. Uma boa garota indiana fica quieta. Obedece as ordens. O sexo não lhe pertence, é algo que lhe acontece na noite de núpcias. Nosso papel é deitar com obediência, não sentir nada.”
Rupi tem 25 anos. Faz parte de uma geração de poetas que encontraram eco nas redes sociais e começaram ali suas experiências. Seus versos podem ser simples – e alguns chegam a ser ingênuos ou mesmo apropriações de clichês de autoajuda – e a crítica até procede, mas há um certo lirismo na maneira como ela e outras de origem semelhante expressam a raiva em relação ao sexismo e às questões de raça. Rupi conversa com sua geração de maneira direta e simples. Se daí o mergulho na poesia for uma consequência, ótimo!
Outros jeitos de usar a boca
De Rupi Kaur. Planeta, 272 páginas. R$ 44,90
Aqui uns versinhos de Outros jeitos de usar a boca….
eu era música
mas suas orelhas tinham sido cortadas
por primos
e tios
e homens
nossos corpos manipulados
pelas pessoas erradas
que mesmo numa cama segura
sentimos medo
quando minha mãe abre a boca
para conversar durante o jantar
meu pai enfia a palavra silêncio
nos seus lábios e diz que ela
nunca deve falar com a boca cheia
foi assim que as mulheres da minha família
aprenderam a viver com a boca fechada
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