De lá pra cá, Rosa continuou a pesquisa e descobriu centenas de outras personagens cujos feitos haviam impactado do mundo das artes ao da ciência, o que fez a autora incrementar Nós, mulheres e reeditá-lo com um acréscimo de 90 outras personalidades. “Nessa nova edição há retratos de mulheres ao longo da história, de 4.300 anos atrás até agora. Essa seleção foi bem mais difícil. Tentei não colocar mulheres conhecidas. Há muito poucas conhecidas. E também tentei que fossem de diversas épocas, de diversas disciplinas, de todas as classes, heróicas, generosas, malvadíssimas, científicas, vedetes. Tudo, e com toda essa riquíssima diversidade do ser”, conta.
Para Rosa, o cenário mudou muito desde 1995, quando publicou o livro pela primeira vez. Naquela época, ela explica, se acreditava que havia pouquíssimas mulheres participantes ativas na história da humanidade simplesmente porque ao gênero não era permitido estudar. “Mas a realidade é muito pior e isso é o que descobrimos nesses anos que transcorreram desde 1995 até agora”, diz Rosa. “O que descobrimos é que, apesar de todas essas discriminações, havia muitíssimas mulheres que fizeram coisas grandiosas na história em todos os âmbitos, culturais, políticos, sociais, científicos, artísticos, todos, absolutamente todos. O que aconteceu é que os anais sexistas e a história discriminatória e machista borraram essas mulheres, o que fez com que fosse muito difícil para elas levar adiante seus trabalhos porque tinham que ficar à margem da história desde sempre.”
No livro, há uma ou outra mais conhecida, como Frida Khalo e Simone de Beauvoir, mas são as desconhecidas que dão o tempero de Nós, mulheres. Rosa avisa que nunca quis fazer um livro hagiográfico, ou seja, com personagens santificadas e boazinhas. Além disso, ela cuidou de equilibrar épocas e nacionalidades. “Elas não tinham que ser boas, algumas são absolutamente malvadas e terríveis, é um livro que celebra a força e a diversidade das mulheres. Creio que nós não queremos ser santas, queremos ser livres, ter a oportunidade de dizer o que queremos”, acredita. “Fui para as histórias que mais me haviam chocado e fascinado”.
Perseguir a trajetória de mulheres não é uma novidade na escrita da autora espanhola. O retrato amoroso de Marie Curie em A ridícula ideia de nunca mais te ver e a saga de uma personagem feminina obrigada a se vestir de homem para sobreviver nos tempos das cruzadas em História do rei transparente são duas belas incursões da autora pelo mundo feminino. No entanto, foi com A louca da casa, uma narrativa divertida com pinceladas de autobiografia e biografia, porém ancorada na ficção, que a espanhola ficou mais conhecida no Brasil. Ex-redatora chefe do jornal El País, para o qual fez inúmeras entrevistas célebres que entraram para a história do jornalismo contemporâneo, Rosa Montero é também uma das romancistas mais premiadas da Espanha e publicou mais de 28 livros. Em entrevista ao Leio de Tudo, ela fala sobre o preparo dessa nova edição de Nós, mulheres, mas também sobre feminismo, história, gênero, sociedade e pandemia.
A primeira edição de Nós, mulheres saiu em 1995, uma época em que biografias femininas não chamavam tanto a atenção do público. O que mudou de 1995 para cá?
Mudou muito. Na época tínhamos mais ou menos a ideia de que as mulheres não haviam participado na história do mundo porque eram discriminadas, não podiam estudar. Temos que levar em conta que não pudemos estudar na universidade até o século 20. Na Espanha, por exemplo, a primeira mulher que pôde estudar na universidade foi em 1911. As mulheres não eram donas legais de seus próprios destinos. Por conta dessas circunstâncias discriminatórias, se pensava que as mulheres, pobrezinhas, não podiam fazer nada. Mas a realidade é muito pior e isso é o que descobrimos nesses anos que transcorreram desde 1995 até agora: apesar de todas essas discriminações, havia muitíssimas mulheres que fizeram coisas grandiosas na história em todos os âmbitos, culturais, políticos, sociais, científicos, artísticos, todos, absolutamente todos. O que acontece é que os anais sexistas e a história discriminatória e machista borraram essas mulheres. Isso fez com que fosse muito difícil para elas levar adiante seus trabalhos, tinham que ficar à margem da história desde sempre, sem poder contar com essa continuidade com que os homens contavam. E isso é uma falsificação da história para todos nós, homens e mulheres, porque os louros de muitas mulheres foram atribuídos aos homens, maridos, colaboradores, professores, irmãos ou foram simplesmente ocultados. Agora estamos sabendo um pouco mais da nossa própria história e, quando tudo isso vier à tona, realmente haverá uma mudança mais igualitária no mundo.
Nós, mulheres
De Rosa Montero. Tradução: Josely Vianna batista. Todavia, 286 páginas. R$ 64,90
Você diz que é hora de pararmos de pensar na “causa da mulher” para transformá-la na causa de todos. Acha que o mundo está preparado para isso? Que esse momento chegou?
Claro que chegamos ao momento em que temos que ter claro que o feminismo não é uma questão de luta de mulheres. Com o feminismo, estamos mudando homens e mulheres, quatro ou cinco gerações de homens e mulheres, estamos mudando uma situação discriminatória e absurda que durou milênios e essa discrimanção é pior para as mulheres, mas é igualmente nociva para os homens. E isso cada dia fica mais claro. Estar obrigado a se encerrar em um estereótipo do que é ser homem ou do que é ser mulher é algo totalmente absurdo e mutilador. Por exemplo, há homens adultos que tiveram problemas terríveis em suas vidas porque tinham que demonstrar uma valentia tópica que criou conflitos tremendos porque não se sentiam suficientemente valentes como o tópico exigia. Felizmente, isso fica cada vez mais claro para os homens, até porque estamos mudando a maneira como nos comportamos e como nos relacionamos, porque nem todos se interessam pelas mesmas coisas. A última manifestação de 8 de março em Madri que pudemos fazer antes da pandemia, em 2019, foi a maior manifestação feminista do mundo. Participaram, segundo dados da polícia, 370 mil pessoas, sendo 40% homens, e 25%, menores.
“Precisamos de modelos reais, precisamos saber que a vida não era nem é como a contaram para nós”: em que pontos as mulheres ainda são enganadas?
Não é que estamos, é que seguimos com o preconceito sexista. O machismo é uma ideologia com a qual todos somos educados, homens e mulheres. E temos esses tópicos de preconceito metidos na parte mais profunda do nosso cerebelo. Os preconceitos, além disso, são insidiosos, invisíveis como os vírus, por isso se chamam preconceitos, estão antes dos conceitos, nem sabemos que os temos, acreditamos que vivemos no mundo de maneira normal e não é verdade, vivemos no mundo através de algumas gamas de cor. Há um monte de experimentos que demonstram que nós mulheres, em todas as partes do mundo, na assistência médica primária, quando temos os mesmos sintomas que os homens somos tratadas de modo diferente. Aos homens são receitadas mais provas para diagnósticos e às mulheres, mais ansiolíticos. Na Espanha, por exemplo, retardamos às mulheres em 13% o tempo até se consultar com um especialista porque antes receita-se ansiolíticos. A palavra do homem segue sendo a lei. E, nos postos de atendimento médico da saúde primária, há mais mulheres doutoras do que homens. Também são as mulheres as que mais crêem nos sintomas dos homens do que nos sintomas das próprias mulheres. Nosso olhar está errado e temos que tentar sair daí. Fazer a inversão em cada caso tem me ajudado muito. Pegue um caso social e troque o homem pela mulher e a mulher pelo homem: de repente se vê quais são as circunstâncias em que vivemos.
A conscientização das mulheres está aumentando?
Acho que temos aumentado nossa consciência antisexista. Creio que, a essa altura do século 21, é ridículo e inadmissível pensar que uma pessoa, seja homem ou mulher, com um mínimo acesso à educação, não seja antiosexista. Acredito que todos nós, homens e mulheres, devíamos ser antisexistas, como todos deveríamos ser antirracistas. Evoluímos muito. Por exemplo, um dos grandes problemas que as mulheres seguem tendo é que não vivemos para nosso próprio desejo, que não damos ao nosso próprio desejo o lugar e a importância essenciais que deveriam ter. Os homens vivem para seu próprio desejo, respeitam seu desejo e tentam consegui-lo. Digo isso não criticamente, ao contrário, é um exemplo que nós também deveríamos seguir. Isso está melhorando, as novas gerações de mulheres levam mais a sério seus próprios desejos e suas próprias vocações. No entanto, falta, para igualdade, uma maior consciência de quem somos.
As mulheres têm se organizado mais na luta contra o machismo?
Nós mulheres sempre nos organizamos associadamente para mais coisas, creio que está nos nossos genes, é um dos recursos da sobrevivência da espécie. Temos mais necessidade de vida social, talvez porque, nas origens, a mulher servia para cuidar da prole. Por exemplo, vamos mais aos atos públicos, sociais e culturais, todas as associações de conferências científicas reúnem mais mulheres que homens. Somente os atos puramente desportivos reúnem mais homens que mulheres, é curioso isso. E claro, as lutas reúnem mais homens. Creio que não há um individualismo crescente em comparação. Na minha época, por exemplo, uma minoria de mulheres e homens se reuniam para lutar pela mudança da sociedade. Hoje segue sendo assim, mas a minoria hoje é maior. Há mais gente jovem implicada em mudar a sociedade, em trabalhar em grupos de apoio social.
Sobre a pandemia: a senhora está na Espanha, um dos países mais afetados. Como encara as ações do governo espanhol diante da gestão dessa crise? Por que, em sua opinião, a Espanha foi um dos países mais atingidos?
É muito difícil saber porque a Espanha foi um dos países mais afetados, é complicado, No entanto estamos analisando e há várias coisas que se pode dizer. A primeira é que somos um dos países europeus com mais turismo, e os países com mais movimento turístico, numa pandemia, são os mais afetados. É elementar. Somos um dos países mais turísticos do mundo. E há outras considerações. Somos uma sociedade com hábitos sociais muito acentuados, necessitamos enormemente uns dos outros. No mundo, somos o país com uma porcentagem maior de bares por habitantes. Imaginamos o que isso indica de necessidade de vida social e de intercâmbio. Temos uma vida social intensa, nos abraçamos, nos beijamos. Agora não mais. E outra coisa é que temos esse sistema das autonomias (das regiões) que não funcionava muito bem. As diversas autonomias fizeram com que a resposta já confusa à pandemia, sobre a qual não conhecíamos nada e continuamos não conhecendo, ficasse mais confusa, desigual, mais lenta e complicada. Esses são alguns dos vários ingredientes que fizeram com que tenha havido e ainda tenha uma porcentagem tão alta de doentes. E enquanto isso, o governo, sabemos, pode fazer melhor. Os melhores resultados da pandemia vieram de países governados por mulheres. Interessante isso. O fato é que não sabemos nada e tentamos tudo. Em todo o mundo, apagamos fogueiras. Salvo alguns casos verdadeiramente criminais, como pessoas que negam o vírus, que o minimizam e fazem políticas criminosas, como Trump. Mas salvo esses casos, acho que todos tentamos fazer o que podíamos.
O que a pandemia revelou sobre a sociedade do século 21? E sobre a desigualdade?
A mim, pessoalmente, não me traz uma revelação maior do que a noção que já tinha da tremenda desigualdade social, da falta de apoio aos setores mais desfavorecidos. E a pandemia está arrasando esses setores. O que me preocupa muito é que todos esses setores estão aumentando, porque o impacto econômico tocou fundo e vai ser imenso. Então realmente, me dá muito medo e é em todo o mundo. O custo social dessa pandemia está sendo terrível. Envolvidos como estamos agora na luta na linha de frente que é a sanitária, não estamos levando em consideração suficiente essa outra luta que também vai matar. A crise econômica vai matar também.
Como encara a ascensão de mentalidades negacionistas, contrárias à ciência e mergulhadas em delírios autocratas, uma realidade vista no Brasil, EUA e alguns países europeus?
Como vejo? Com um desespero e desconsolo tremendos. Por outro lado, essa é uma das atitudes do ser humano, a negativa. Quando há uma crise desse tamanho e dessa proporção, as pessoas se sentem tão indefesas, com tanto medo, tão deprimidas, que têm reações ruins, buscam culpados, porque claro, como não podemos encontrar um culpado no próprio vírus, buscamos culpados. Aí surgem explicações sem sentido e acabamos dando o sentido que queremos, mesmo que seja completamente delirante. É como o delírio do louco: o delírio clínico de um esquizofrênico é uma defesa da mente para tentar dar sentido a um mundo que não tem sentido. Acreditar em teorias delirantes e néscias são delírios de mentes doentes por causa da dor, da angústia, da insegurança. É uma resposta muito ruim tentar se consolar com o ódio, buscando culpados e contando essas histórias demenciais. O mais terrível é ter líderes políticos que estejam disseminando essas histórias, não porque acreditam nelas, mas porque lhes convém. Isso é um crime. Isso, para mim, equivale ao genocídio. É um crime contra a humanidade.
Nascida em Boston, uma das cidades mais literárias dos Estados Unidos, terra de Edgar Allan…
Como o mundo funciona — Um guia científico para o passado, o presente e o…
Romance, ciência, história e contemporaneidade: o Leio de Tudo selecionou oito publicações recentes que merecem…
Depois de cinco anos escrevendo o que chama de “livro-pesquisa”, Santiago Nazarian resolveu mergulhar em…
Saia da frente do meu sol De Felipe Charbel. Autêntica Contemporânea, 136 páginas. R$ 38,90…
Um episódio real e chocante despertou no português Miguel Sousa Tavares a urgência de escrever…