Smith não dá nome à sua personagem, mas é ela quem conduz a narrativa. Duas amigas de infância, crescidas em Londres em bairro de classe operária marcado pela imigração, pelo desemprego e por constantes problemas sociais, constroem uma amizade erguida sobre semelhanças que, por fim, acabam por marcar suas diferenças. Ambas são filhas de jamaicanos com ingleses, têm a mesma cor de pele e o mesmo fascínio pelo mundo dos musicais. Mas, se suas origens são parecidas, as personalidades de seus progenitores não poderiam ser mais diferentes.
De origem jamaicana, a mãe da narradora traça um caminho em direção ao parlamento inglês com um discurso feminista, combativo e voltado para as minorias. Inglesa, a mãe da amiga, Tracey, cria a filha sozinha e a alimenta com sonhos que envolvem palcos e muitos tutus cor de rosa. Violência doméstica, pai ausente e desemprego são instabilidades constantes na vida de Tracey, que tenta desesperadamente escapar da situação mas acaba, mais tarde, por reproduzi-la. Talentosa, ao contrário da amiga, ela embarca em uma carreira de dançarina que nunca alcança o protagonismo, o que a relega a segundo plano e, mais tarde, à desistência.
As duas estudam dança. As duas têm um gosto adorável pelos musicais da década de 1960. O universo de Zadie Smith é sempre recheado de muitas referências e, em Ritmo louco, ele casaria muito bem com uma trilha sonora liderada por Fred Astaire, Cab Calloway a Michael Jackson. É, aliás, desse universo que surge uma terceira personagem, uma celebridade da música pop, dançarina de origem, mãe biológica de duas crianças e adotiva de outras tantas resultantes de adoções duvidosas em um pequenino país africano. Em Aimee, qualquer semelhança com Madonna não é mera coincidência. Faz parte do jogo de Smith para falar sobre um mundo marcado por convicções que não levam em conta a alteridade, a história individual e, sobretudo, as diferenças culturais.
É para a celebridade que a narradora vai trabalhar como assistente e é nesse meio que ela se confronta com sua própria identidade. Quando Aimee decide construir uma escola para crianças no país africano no qual adotou os filhos, a narradora passa a entender o quanto suas origens a colocam em cima de um muro, em uma fronteira identitária na qual há muito mais dúvidas do que certezas. “Para Aimee, a pobreza era um desleixo do mundo entre tantos outros, algo que poderia ser corrigido facilmente caso as pessoas se dedicassem ao problema com o mesmo foco que ela dedicava a tudo”, explica. O pensamento simplista ocidental quanto à realidade africana se revela perturbador para a narradora, que começa a perceber seu próprio lugar no mundo como algo nada fixo, fruto apenas de uma perspectiva.
Em um dos diálogos mais impactantes de Ritmo louco, ela está na pequena aldeia africana quando se dá conta de que o amigo e segurança da cantora, o afro-americano Granger, tem uma percepção muito diferente da sua. “Onde eu via privação, injustiça, pobreza, Granger via simplicidade, ausência de materialismo, beleza comunitária — o oposto da América em que ele havia sido criado”, constata.
Dentes brancos, o primeiro romance da autora, é o que mais se aproxima de Ritmo louco. O mesmo universo, as mesmas constatações identitárias de quem está a cavalo entre duas culturas e acaba não sendo reconhecido como legítimo por nenhum dos lados, a mesma sensação de eterno estranhamento marcam o primeiro romance, que causou rebuliço no mercado editorial porque a autora estreante recebeu um importante adiantamento. Em seguida vieram livros como O caçador de autógrafos e NW, que escapam um pouco da cena que Smith domina com maestria.
Quem leu os outros quatro romances de Zadie Smith vai sair com a sensação de que ela nunca acertou tanto a mão quanto em Ritmo louco. Quem não leu certamente vai fechar o livro com a certeza de que há ali uma história que também lhe diz respeito.
De Zadie Smith. Tradução: Daniel Galera. Companhia das Letras, 526 páginas. R$ 79,90
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