Rita Lee destila ironia em livro de contos

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Dropz poderia muito bem ser um disco. Tudo o que Rita Lee escreveu nesse livro de contos, que chega depois da polêmica e sincera autobiografia, rende música simplesmente porque a cantora/compositora/escritora é uma narradora de primeira, seja na ficção, seja na canção. Rita é, ainda, excelente em transformar coisinhas do cotidiano em textos que nos prendem por conterem a dose certa de ironia (autodirigida, muitas vezes), indignação, humor e crítica. Dito assim, os ingredientes de Dropz vêm de um cardápio que sempre esteve presente nas músicas da autora.

Rita Lee olha para o mundo da “bobalização”, o “mundinho esquisitão” no qual vivemos, com uma pena afiada e impiedosa. Para tal, cria personagens peculiares, como a Cantante decadante, a MulherSofá e a MulherAlmofada, o pastor pecador, o muçulmano Ahmud e a Kundalini que era Deus. São tipos perfeitos para distribuir os tapas na cara que pontuam as crônicas: a narrativa é engraçada, mas não é de graça que Rita Lee quer falar.

Assim, a autora não poupa um. Comer animais parece esdrúxulo no conto no qual o narrador visita um mundo comandado por bichos, uma “carona” na Revolução dos bichos, de George Orwell, porque Rita Lee também deixa claras suas referências e leituras. “Ainda bem que foi apenas uma viagem na maionese da minha imaginação. Ainda bem que a raça humana é bacana”, escreve. Ela faz uso de muita ironia, um dos recursos mais difíceis da ficção, para mostrar que não está ali a passeio. Mas também, o que seria da ex-Mutante sem ironia, não é mesmo? Quem acompanhou a trajetória da escritora sabe como suas composições empregam bem a fórmula de falar uma coisa querendo dizer outra coisa.

Um dos aspectos divertidos de Dropz são as referências. Elas não são apenas literárias – e Rita Lee é uma excelente leitora, por sinal -, são também históricas e contemporâneas, falam da “bobalização”, uma era na qual entramos recentemente graças às doses cavalares de informação e desinformação que circulam pela internet. A “bobalização” é infantil e constrangedora. E Rita Lee explicita isso em contos como o da princesa inglesa entristecida, comparada a uma personagem de filme da Disney. Ou em um texto dedicado a Elvis Presley, um coitado em fim de carreira que se depara com a própria decadência enquanto rumina como vai dar fim à própria vida. Rita é sutil ao falar desses personagens. Não cita nomes diretamente, mas qualquer um com o mínimo de cultura pop vai saber do que ela está falando, situação aliás, que se repete em vários textos.  Alienígenas, universos paralelos, fantasias como a da menina que vira planta ou da morte que é nascimento e a atriz que se alimenta da histeria dos fãs aparecem aqui e ali por razões muito boas: o absurdo pode ser a melhor maneira de falar de coisas sérias que se tornam banais num cotidiano apressado e superficial. Ah, e são dela também as ilustrações que pontuam o livro.

Dropz

De Rita Lee. Globo Livros, 272 páginas. R$ 44,90

Nahima Maciel

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