O lirismo cirúrgico de Adriana Lisboa

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A perda inesperada da mãe, em 2014, mobilizou a escritora Adriana Lisboa para escrever Todos os santos. Devastada, ela precisou lidar com um luto que, até então, era apenas uma probabilidade remota. Ao enfrentar a dor do desaparecimento materno, encontrou um eco literário extremamente delicado. Todos os santos é um livro triste e melancólico, costurado por uma combinação de palavras cirurgicamente pinçadas no léxico lírico que Adriana manuseia tão bem.

Vanessa e André formam um jovem casal de pesquisadores que emigrou para a Nova Zelândia na expectativa de estudar o comportamento de uma categoria específica de pássaros. Amigos na infância, amantes na adolescência, eles são fruto de um encontro marcado por tragédia. Vanessa perdeu o irmão afogado em uma piscina de clube durante uma festinha de aniversário de criança. O acidente destroçou a família da menina, os pais se separaram e o pai se aproximou da mãe de André, o que estreitou a convivência entre os jovens. De uma paixão adolescente para uma vida em comum, a trajetória de André e Vanessa parece romântica e óbvia, mas um segredo plantado entre os dois há décadas vai abrir caminhos que escapam da banalidade.

O plot é pouco para falar da escrita da Adriana Lisboa, marcada por uma maneira de construir o espaço literário que emociona e desconcerta. O romance traz aspectos que sempre estiveram presentes no universo da autora, como os deslocamentos, um contexto contemporâneo, uma ideia (nada idealizada) de Brasil, referências na história recente do país e uma ligação muito intensa com a poesia. Em Todos os santos, ela acrescenta mais uma: a preocupação com o planeta.

No espectro de dores dos personagens e no próprio rol de urgências de Adriana está a questão climática. “A questão que julgo mais importante dos nossos dias é o que o chamado Antropoceno vem representando de dano irreparável, sobretudo em termos de crise climática e extinções em massa — o que também envolve perda e luto, para além de uma necessidade urgente de ação”, diz, em entrevista, por e-mail, enviada de Austin (Estados Unidos), onde dá aulas no Departamento de Espanhol e Português da Universidade do Texas. “Gosto muito do convívio com o espanhol e a cultura mexicana e centro-americana, por estar tão perto da fronteira (embora nesta mesma fronteira a gravíssima crise migratória seja outro dos vexames deste governo)”, repara, depois de morar no Colorado por uma década e de um breve período na Nova Zelândia. “Mas vou todos os anos ao Brasil, onde tenho família, amigos e muitos elos afetivos. Continuo escrevendo em português e acho que isso não vai mudar nunca”, avisa.

Todos os santos
De Adriana Lisboa. Alfaguara, 148 páginas. R$ 49,90

Entrevista: Adriana Lisboa

Quais as perdas impressas nesse romance?
Todos os santos começou a ser pensado em 2014, quando perdi a minha mãe de modo inesperado. Foi devastador, e um luto dessa envergadura, até então só probabilidade remota para mim, se tornou algo vivido na carne. Além disso, a questão que julgo mais importante dos nossos dias é o que o chamado Antropoceno vem representando de dano irreparável, sobretudo em termos de crise climática e extinções em massa – o que também envolve perda e luto, para além de uma necessidade urgente de ação. E, é claro, há tantos ideais políticos e sociais indo por água abaixo com os governos de extrema direita em diversas partes do mundo. Então, o romance tem o desejo de dialogar um pouco com tudo isso, mas através de uma reflexão e uma elaboração íntimas, de uma personagem narradora que revisita sua história pessoal e busca saber quais os futuros caminhos possíveis.

“Ele fez o inevitável comentário sobre a desgraça dos nosso tempos, a ineficiência dos nossos poderes, a inflação que comia solta. E ele nem sabia, coitado, o quanto a coisa ainda ia piorar. Reclamava de barriga cheia, pobre Jonas”: olhando para o Brasil hoje, o quanto pioramos? Com que perspectiva você vê o país, depois de tantos anos fora?
Pioramos em quase tudo. O Brasil de hoje me parece viver uma catástrofe, possibilitada em grande parte pela catástrofe que aconteceu com as eleições estadunidenses de 2016 e a caixa de Pandora que a chegada de Trump ao poder abriu. O que me traz algum alento é ver a força dos movimentos de resistência. Não tenho como avaliar qual seria a minha percepção se estivesse o ano todo no Brasil, mas tanto aí quanto aqui, e em outras partes do mundo, assusta ver o quanto o capitalismo neoliberal parece estar cada vez mais encontrando no neofascismo uma forma política extremamente conveniente de se firmar no poder.

Sobre deslocamento, ele é elemento importante em Azul corvo, em Hanói, e agora em Todos os santos. Tem a ver com seu próprio deslocamento?
Quando comecei a escrever sobre deslocamentos – primeiro com Rakushisha, que trata somente de uma viagem, e depois com Azul corvo e Hanói, que tratam de migrações – esse tema se relacionava mais diretamente à minha experiência pessoal, embora nenhum desses livros possa ser confundido com autoficção. Com Todos os santos, o deslocamento que mais me interessa é o das aves: a migração anual empreendida pelo kuaka entre a Nova Zelândia e o Alaska. O livro fala de travessias reais e metafóricas, da vida como travessia, acho, e do entrecruzamento de caminhos nesse processo – pessoas e seus afetos, animais, águas dos rios e dos mares, gerações, memórias, histórias, encontros, desencontros. Penso muito na travessia roseana, no deserto que nos toca a todos atravessar, de algum modo: o sertão que está em toda parte. É o que mais me interessa no tema do deslocamento, hoje.

Pode falar um pouco sobre o diálogo da sua escrita com a poesia? O seu texto é sempre muito poético…
Minha escrita deve à poesia faz décadas. Passei a infância e a adolescência escrevendo poesia. Meu primeiro projeto literário “oficial” foi um romance, mas eu nunca deixei de ler, escrever e amar poesia. Por algum motivo, sempre tive uma dificuldade imensa em avaliar os meus próprios versos, então eles não saíam da gaveta, até um livro finalmente ganhar corpo (Parte da paisagem, publicado em 2014) e passar pela avaliação fundamental de algumas amigas poetas, a quem devo a coragem de sair do armário como poeta também.

“Comparou as suas mãos às dela. Difícil acreditar que a sua mão, miúda e gordinha, era o passado da mão dela”: Todos os santos também é um livro sobre o tempo, sobre as gerações, sobre as heranças e como levamos isso para os relacionamentos ao longo da vida?
Acho que o tempo é um dos meus temas, desde sempre, tanto na prosa quanto na poesia: o fato de o tempo ser relativo, de se confundir ao espaço, de conferir significado às coisas, de alterá-las com sua passagem em nossa lembrança, e de ter a capacidade de nos preencher com um bem-vindo apreço pela vida, ou no mínimo um respeito por ela, quando nos damos conta – não racionalmente, mas visceralmente – de que esta nossa passagem por aqui é brevíssima, e a passagem dos outros pela nossa vida também. Aí está, aliás, a ideia de travessia novamente. As gerações, as heranças, o que passa e o que fica, tudo isso é somente uma maneira de abordar esse tema mais amplo.

Seria seu livro mais geracional? Há muitas referências geracionais… Foi sua intenção?
Não foi minha intenção, pelo menos não racionalmente, mas nem tudo o que fazemos no trabalho da escrita é decisão racional. Minha ideia era falar menos de uma geração, como uma espécie de porta-voz dela, e mais de experiências particulares que três personagens compartilharam intimamente por fazer parte dessa geração. Que é a minha também. Mas é sempre preciso lembrar de se trata de um recorte, e que não há nenhuma intenção no romance de fazer uma espécie de apanhado geral das experiências dessa geração – especificamente, a que cresceu no Rio de Janeiro entre os anos 1970 e 1990.

Nahima Maciel

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