Quando Pierre, seu marido cientista, morreu, ela deixou que apenas o diário conhecesse sua dor (que acabava também expressa no seu definhamento físico) e, mais tarde, quando se apaixonou pelo físico Paul Langevin, escondeu do mundo a alegria que o relacionamento lhe trouxe. Langevin era casado e isso complicava tudo. Mais uma vez, foi para o diário que ela se voltou. Precisava, novamente, parecer um homem para não ver sua pesquisa cair em descrédito. Essa faceta da Marie humana atraiu a atenção da escritora e jornalista espanhola Rosa Montero, que escreveu A ridícula ideia de nunca mais te ver, um livrinho com um ensaio muito delicado e esperto cuja autora, ela também, vinha embalada pela dor do luto pela perda do parceiro. “Não é um livro sobre a morte, mas um livro sobre a vida, sobre como aprender a viver melhor, com mais plenitude e mais serenidade. Mas, para chegar nisso, é preciso antes fazer um acordo com a morte”, avisa Rosa.
A autora espanhola aceitou escrever o livro – uma sugestão da editora – após ler o diário de Marie Curie. “É um diário do luto escrito como um uivo de dor em carne viva. Sua inesperada paixão (seu personagem oficial é tão controlado, tão aparentemente frio….) foi o que me fez pensar em escrever esse livro. É uma personagem poliédrica, muito humana. Marie Curie tem problemas e sentimentos básicos que experimentamos todos. O livro também é sobre liberdade de escolha”, garante.
A ridícula ideia de nunca mais te ver não é sobre o luto, e sim sobre os contrastes entre a personalidade que Marie cultivava como cientista e a que ocultava para manter o respeito. Rosa escreve com paixão sobre a personagem, e sempre em um tom muito pessoal. Marie a fascina e ela não esconde essa admiração, ao mesmo tempo em que se permite várias reflexões sobre sua própria trajetória que, por fim, acaba sendo universal.
Fingir não ter sentimentos para ser respeitada no meio masculino e apagar a feminilidade para impor respeito não são situações estranhas a mulheres como Rosa e Marie, ainda que hoje os movimentos feministas tenham facilitado as coisas e permitido que se fale sobre isso abertamente. É emblemático, no livro, o episódio em que o caso de Marie com Paul Langevin é revelado pela imprensa e a cientista, dona de dois Nobel, descobridora de elementos que revolucionaram a indústria e a medicina, se vê linchada como destruidora de lares e até mesmo privada de receber o prêmio. A ridícula ideia de nunca mais te ver é um livro muito bonito, sincero como é sempre a escrita de Rosa Montero, e para ser apreciado com pausas, já que há passagens bastante duras.
A ridícula ideia de nunca mais te ver
De Rosa Montero. Tradução: Mariana Sanchez. Todavia, 206 páginas. R$ 54,90
Você diz que o livro é também sobre a liberdade de escolha. Mas essa liberdade ainda não é um caminho viável para muitas mulheres em certas partes do mundo…
A liberdade é difícil para todos, homens e mulheres. No mundo Ocidental, essa busca da verdadeira e íntima liberdade (não somente a de escolha, mas também a de saber o que se deseja), pode ser custosa para todos e mais difícil ainda para as mulheres porque não levamos nossos próprios desejos tão a sério quanto os homens (deveríamos aprender com eles). No mundo, em geral, está claro que as mulheres ainda sofrem enormes dificuldades para controlar suas próprias vidas. Mas estamos avançando.
Depois de tantas conquistas femininas, estamos vendo governos extremamente conservadores que ameaçam essas conquistas. Como vê essa onda conservadora que invade países como o Brasil, os EUA e o leste europeu?
O auge do extremismo, do dogmatismo, do fanatismo, do fascismo e do neoestalinismo, da saudade das tiranias, das demagogias ultras, é algo que está em alta no mundo todo, desgraçadamente, e é uma consequência do descrédito no sistema democrático e da última crise econômica, que provocou o empobrecimento de 25% da população mundial. Tudo isso é uma tragédia. Eu, que nasci e cresci na ditadura de Franco, sei bem que a pior democracia é sempre mil vezes melhor que uma ditadura. É preciso refundar a democracia ou correremos o risco de perder ganhos sociais conseguidos com sangue, suor e lágrimas durante séculos. E as primeiras vítimas desses tempos reacionários são as mulheres. Mas, ao mesmo tempo, surgiram com tanta força movimentos como o Me too e a reações feministas mundiais que se tornaram uma resposta à involução. Devemos lutar para defender os ganhos democráticos e estamos fazendo isso.
Na Espanha, a opção foi à esquerda. Acredita que essa seja uma boa solução para o seu país?
As eleições foram um sopro de ar fresco. Felizmente, as previsões catastróficas de uma subida enorme da extrema direita não deram em nada. Segue sendo uma situação difícil, sobretudo pelo independentismo catalão, mas, sem dúvida, o resultado tem sido o melhor possível.
Sobre Marie Curie e o livro: em muitos momentos, vemos Rosa e Mme. Curie se igualarem na narrativa. Como foi a sensação de se aproximar tanto de uma mulher com as qualificações dela?
Não me aproximei nem me comparei com ela de igual para igual, como profissional ou mulher talentosa. Ela é incomparável nesse quesito. No entanto, sim, me comparei e me reconheci como pessoa, e isso podemos fazer todos. Muito no fundo de cada um de nós estão todos nós.
O que mais a fascinou na pesquisa sobre Marie Curie?
O que mais me surpreendeu foi conhecer sua faceta apaixonada até a loucura. A Marie Curie oficial parece tão fria, tão controlada em suas fotos. E não sorri nunca. Mas, na realidade, era uma força da natureza e amava com ímpeto de um maremoto. Sua história de paixão com Paul Langevin, após a morte de Pierre, é alucinante. Assim como foi o fato de que, na França, quiseram linchá-la depois de ficarem sabendo da relação. Mas o mais fascinante de Marie é sua vontade de ferro. Conseguiu, literalmente, o impossível.
O caminho das mulheres está mais fácil no século 21? Ou não?
Não em todos os lugares (as meninas continuam a levar tiros na cabeça por quererem estudar, como Malala), mas, no conjunto, com certeza. Muitíssimo mais fácil. Estamos desconstruindo, em um século, um tipo de sociedade que durou milênios.
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