E o Chupa-cabra, que aterrorizou os animais de fazendas em toda a América Latina, começando com Porto Rico e vindo parar no Brasil? Ou o Lucas da Feira, escravo que fugiu dos donos e passou a aterrorizar os habitantes e tropeiros de Feira de Santana, considerado por muitos um herói do porte de Zumbi dos Palmares?
As três lendas urbanas se transformaram em folclore para se juntar a histórias clássicas como a do Curupira e do Homem do Saco. A jornalista e pesquisadora Januária Cristina Alves resolveu compilar todas essas histórias em Abecedário de personagens do folclore brasileiro, publicado pela Edições Sesc em parceria com a FTD e uma excelente forma de se comemorar o Dia do Folclore, celebrado hoje porque 22 de agosto foi o dia em que o arqueólogo britânico William John Thoms sugeriu o uso da palavra para falar de mitos e tradições.
A compilação de Januária é extensa, divertida e preciosa. Não precisa ser lida na ordem, já que se trata de um abecedário, e traz, além de lendas muito conhecidas como a do Boto, do Bumba meu Boi, do Lobisomem e da Mula sem Cabeça, uma quantidade enorme de personagens pouco conhecidos nacionalmente, mas simbólicos em certas regiões. O Brasil é um país grande, cheio de sotaques e costumes, nada mais natural que cada cantinho tenha sua lenda. “Queria muito contemplar as regiões brasileiras, porque temos muitos Brasis dentro do Brasil, e muitas origens, com os europeus, os índios, os africanos, então eu queria um caldo cultural representativo do que a gente tem de mais significativo”, avisa a autora.
A ideia era fazer um verdadeiro inventário do folclore brasileiro e Januária foi cuidadosa na pesquisa. Só incluiu entre os mais de 140 personagens aqueles que conseguiu comprovar com registros escritos. As fontes são as mais variadas possíveis e vão desde cartas, recortes de jornais e anotações de figuras históricas a citações em textos clássicos da literatura, passando, claro, pela pesquisa de grandes folcloristas brasileiros, como Câmara Cascudo, José Ribeiro, Simões Lopes Neto, Sílvio Romero e Ricardo Azevedo. Este último, inclusive, abriu a biblioteca a Januária para que ela pudesse pesquisar em livros e edições antigas. O padre José de Anchieta, por exemplo, fala de um espírito mau temido pelos índios. Seria o mesmo citado por Érico Veríssimo em romance de 1937, no qual narra um encontro entre o protagonista e Anhangá. Segundo Januária, esse é um dos personagens mais antigos do nosso folclore, uma entidade malvada para os jesuítas e protetora das florestas para os índios.
“A gente queria fazer um inventário do folclore. Parti do Câmara Cascudo, que tem, talvez, o levantamento mais amplo, mas achei que precisava incluir mitos e lendas mais contemporâneos, como a Loira do Banheiro e o Chupa Cabra”, conta Januária. “E me deu muita vontade também de ir atrás do que ele (Câmara Cascudo) deixou de fora, então fui pesquisar fontes para trás dele, alguns registros que a gente tinha do descobrimento do Brasil, coisas que talvez ele tenha desconsiderado e achei que era importante de serem registradas. Partimos desse pressuposto de considerar o que tem registro escrito o que é importante, porque muitos desses personagens tinham apenas registro oral.”
As ilustrações são um mundo à parte no abecedário. Assinadas pelo ilustrador paulista Cezar Berger, do estúdio IdeaFixa, elas criam um imaginário fantástico e dão rosto e forma (às vezes monstruosas) aos personagens. Berger adota a combinação de verde com vermelho e preto para dar um tom dramático aos desenhos. Veja abaixo a história de alguns dos personagens menos conhecidos listados por Januária Cristina Alves.
Arranca língua – ou o King Kong brasileiro, um macaco de quatro metros de altura capaz de arrancar a língua do gado que anda em rebanho. Os registros do Arranca língua estão em recortes da imprensa da primeira metade do século 20, que trazem até depoimentos de fazendeiros.
Cachorrinha-d´água – Quem cruzar com o simpático animalzinho à beira do São Francisco terá sorte e riquezas. Ela tem pelos brancos e está sempre se secando ao sol nas margens do rio. Também tem uma estrela na testa e é muito famosa entre a população ribeirinha. Carlos Drummond de Andrade conhecia a lenda e a citou no poema Águas e mágoas.
Guariba – O macaco barbado não morre e aterroriza caçadores. Anda em bando, canta, urra e faz a barba com unhas e pedras cortantes. Para certos povos indígenas, seus pajés têm capacidade de se transformar em Guaribas.
Abecedário de personagens do folclore brasileiro
De Januária Cristina Alves. Sesc Edições e FTD, 416 páginas. R$ 55.
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