Sabe aquela poesia cheia de oralidade, cheia de imagens que evocam o tempo, os cheiros, os lugares, os gostos, tudo isso inserido em momentinhos do cotidiano que podem ser muito concretos ou simplesmente abstrações do pensamento? Então, é mais ou menos para um mundo assim que a poesia de Bruna Beber carrega o leitor em Ladainha, novo livro de poesia da autora nascida em Duque de Caxias (Rio de Janeiro) e radicada em São Paulo.
Bruna é um dos nomes de destaque da geração de jovens poetas destas primeiras décadas do século 21. Em 2013, ela conquistou Paraty ao lançar Rua da padaria durante a Flip daquele ano. No livro, a infância na Baixada Fluminense é tema constante. A poesia autobiográfica de Bruna Beber vinha com um quê de nostalgia, apesar de os versos de Rua da padaria não falarem de um passado tão distante assim. Afina, a autora tem 33 anos. O tempo também está em Ladainha, mas de uma forma diferente. Agora, ele aparece em estado de suspensão. Bruna tentou “desespacializar” o tempo. Ou “transtemporalizar”. A tentativa rendeu versos como “tomado obtido/recebido e levado/envolvido, ocupado/abrangido e bifurcado/expandido e vencido”. Rua da padaria é um livro nostálgico, no qual Burna quer fotografar e recriar o passado. Em Ladainha, ela fala no futuro e em investigar outros tipos de tempo. “Quis buscar o verso nos entretempos, nos espaços entre as coisas nítidas e no invisível. Eu acho que a poesia ela não se localiza em nenhum tempo, nós não conseguimos compreender o tempo, ele é só uma ferramenta moldável e convencional que cada um aprende a usar à sua maneira. E a poesia é superior a tudo que eu conheço e que eu desconheço, já as palavras são de todos”, explica autora, que se define como um ser essencialmente nostálgico.
Ladainha é quase uma volta à poesia. Bruna publicou Rua da padaria em 2013, mas o livro foi finalizado em 2010. Na contagem da poeta, são cinco anos de míngua. “E uma míngua intencional, eu jogava tudo fora, não salvava nem o processo, que é algo que costumo fazer, separando por etapas de edição. Eu estava buscando novos caminhos, não queria seguir com nada do que eu já tinha até ali ou pelo menos com muito pouco disso. Foi um tempo de descansar a forma e tentar inventar outras”, conta. Somente em 2015 ela começou a experimentar. Ladainha nasceu lentamente, quando Bruna já se sentia pronta para um recomeço que, na época, ela nem sabia que buscava.
Vamos então a Ladainha. Não há títulos nos poemas, apenas números. Todos primos. Se encarado como uma porta de entrada no poema, o título pode direcionar a leitura, dar aos versos uma etiqueta, uma certidão, um nome. E Bruna não queria isso. Ele preferia a ideia de convidar o leitor para adentrar a poesia por alçapões, janelas, sótãos, gavetas, varandas. “Eu queria que fosse possível entrar e sair dos poemas de diversas formas”, avisa. Não é essencial, mas saber que o livro também nasceu de perdas e muita solidão dá um sentido especial à arquitetura de versos como “Quem já fez/ de uma pedreira/seu beliche/ Não tem medo de veneno/ Não tem medo de viagem/ come o esqueleto da maçã”. São coisas escritas em um momento de reinvenção de si mesma, quando a autora, depois de alguns desencontros, precisou morar sozinha novamente, encontrar um novo espaço físico e emocional. “Eu sentia uma necessidade de expansão, de reabertura, de contato mais direto com o místico que nos rodeia, um mergulho espiritual e íntimo de transformação. Então foi um livro que nasceu muito de uma pesquisa de músicas e rituais sagrados brasileiros, de abertura para o ancestral, do contato ainda mais acirrado com a oralidade, com o sublime e o banal de estar vivo. Acho que em Ladainha eu evoco e indago sobretudo o desconhecido”, revela Bruna Beber, que escreve poesia cheia de sutilezas.
Ladainha
De Bruna Beber. Record, 96 páginas. R$ 32,90.
37.
O fogo se desdobra
em fogo e o fogo
vira mais fogo
muito fogo
Até que vira
cinza e a cinza
um monte de cinza
muita cinza vira
Terra e aterra
debaixo da terra
tem mais terra
não acaba até
Aparecer a lâmina
da água
escorrendo
sobrevivente e debaixo
Dessa água talvez mais
água e depois mais
terra e a terra
pega fogo sozinha
Não sinto falta de ar
grande amigo é o vento
acende fogo espalha terra
bota a gente pra dormir.
“Eu os estranho como um velho conhecido/que não chegou a ser amigo, silêncio cheio/de ilusão e mandioca madura”: escrever poesia é estranhar? Você estranha seus próprios versos?
Eu estranho tudo que escrevi até hoje, no momento da escrita e anos depois. Mas com o Ladainha eu experimentei muitos tipos de desvio, em vários momentos eu suspendia a racionalidade mas sentia intimamente cada verso, cada poema. Era como se um onda me embalasse e ao mesmo tempo em que me conduzia, eu me deslocava por dentro dela, alterando seu curso. Não sei explicar bem e também não gosto muito de narrar certas sensações individuais pois elas podem soar tolas e delirantes, mas eu me sentia envolta numa névoa, uma espécie de caos gerador. Acho que o estranhamento, o espanto é comum a vários poetas, vejo também que hoje a minha poesia busca esses passeios e que ela parte dessa tentativa de tentar conversar com o que me ultrapassa.
No posfácio, Eduardo Sterzi fala muito na relação entre o tempo a poesia e as palavras. O que o tempo tem a ver com a poesia?
Eu acho que a poesia ela não se localiza em nenhum tempo, nós não conseguimos compreender o tempo, ele é só uma ferramenta moldável e convencional que cada um aprende a usar à sua maneira. E a poesia é superior a tudo que eu conheço e que eu desconheço, já as palavras são de todos.
Por que escrever hoje? Por que escrever poesia? É preciso um motivo?
Adoraria saber responder a essa pergunta. Mas, escrevo porque gosto muito de escrever, foi o jeito que eu encontrei de viver. Eu me dedico à poesia, a pensar a poesia, a compreender a poesia, a ler poesia, a escrever poesia porque lhe sou devota. E acho que é melhor substituir todas essas “poesia”, o fazer puro, por “poema”, o querer, o entusiasmo.
“É sobre conseguir chegar naquilo que eu sou/E cada vez mais perto daquilo que sou com alegria”: a poesia é sobre ser? Sobre mergulhar nas palavras? E pode ser uma camisa de força?
A poesia é sobretudo, de modo específico e também incomum, não corresponde a nada mas é correspondente de todas as coisas que existem. Ela é sobre, totalidade, parte e além. Eu não sei explicar a poesia, tenho sorte por isso.