Jia Tolentino: internet, feminismo e monetização do eu sob a perspectiva de uma millennial

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Jia Tolentino ficou famosa na adolescência, quando participou do reality show Girls vs Boys, edição  Porto Rico. Não tinha ainda 17 anos, mas, naquela época, por volta de 2005,  já conhecia bem a internet. Nascida no Canadá, filha de imigrantes das Filipinas e criada no Texas, Jia foi uma dessas adolescentes que mergulharam com tudo na internet no momento em que as redes sociais começavam a redesenhar a maneira como as pessoas, especialmente os jovens, se relacionavam. Era o início do século 20, ela passou por todas as plataformas, teve blogs muito cedo, se expôs sempre com bastante ênfase, mas também se entregou com vontade à reflexão sobre o que tudo isso significava e como essa exposição estava transformando as relações e o mundo do consumo.

Jia estudou jornalismo na Universidade de Virgínia, serviu como voluntária do Corpos da paz no Quirguistão, foi editora do site Jezebel, que tem como subtítulo a indicação de ser “supostamente feminista”, e publicou matérias nos títulos mais importantes da imprensa americana até se tornar editora da The New Yorker, revista de maior prestígio dos Estados Unidos. Tudo isso antes dos 30 anos. Hoje com 32, Jia acabou ficando conhecida por ser a mente pensante mais interessante da geração millennials.

Falso espelho – Reflexões sobre a autoilusão, que acaba de ser publicado no Brasil pela Todavia, é seu primeiro livro de ensaios e traz um  bocado do pensamento que ecoa nessa geração e acaba por moldar, também, o comportamento de gerações anteriores. O bom-humor e a inteligência da autora fazem da leitura um processo agradável na mesma proporção em que forçam a reflexão. Com o mesmo desembaraço que fala sobre sua própria exposição nas redes e sobre episódios íntimos e decisivos de sua vida, Jia traz questões complexas como o que chama de culto do feminismo a mulheres difíceis, a vigilância na internet, a monetização do eu, a exposição nas redes e a ansiedade gerada por uma ideia de comunidade on-line que, mais do que compartilhar, está empenhada em manipulação, ataques e circulação de não-verdades. “A internet pode parecer uma linha direta surpreendente com a realidade (…), mas ela também pode tirar nossa energia da ação propriamente dita, deixando a esfera do mundo real para as pessoas que já a controlam, e nos mantendo ocupados com sucessivas tentativas de explicar nossa vida da melhor forma possível”, escreve.

“A internet estava aumentando drasticamente nossa capacidade de saber sobre as coisas, enquanto nossa capacidade de mudar as coisas continuava a mesma, ou possivelmente diminuía bem diante de nós”

De Nova York, dois dias antes de seguir para o hospital para dar à luz à filha Paloma, depois de uma quarentena tensa e de participação ativa nas manifestações contra a brutalidade da polícia que matou o negro George Floyd, Jia respondeu à entrevista do Leio de tudo.

Falso espelho – Reflexões sobre a autoilusão

De Jia Tolentino. Tradução: Carol Bensimon. Todavia, 368 páginas. R$ 79,90

Você acha que o coronavírus e a pandemia vão mudar o mundo, ou, pelo menos, a relação das pessoas com a internet?

Em termos de como vai mudar o mundo, vai expor e exacerbar (como já vem expondo e exacerbando) enormes desigualdades, e está por nossa conta agora saber se queremos e se estamos aptos a construir uma luta por um bem-estar coletivo e pela sobrevivência. Em termos de como vai mudar os relacionamentos das pessoas, vai, necessariamente, aumentar nossa confiança no uso da internet porque, agora, o mundo físico se tornou, de várias maneiras, inseguro. Eu espero, no entanto, que deixe muitas pessoas famintas pela insubstituível presença física. Eu acho que a pandemia já nos mostrou que a internet não é um substituto satisfatório, politicamente e emocionalmente, para o que podemos fazer quando estamos fisicamente próximos uns aos outros.

Um de seus ensaios aponta para a monetização das pessoas, a última fronteira do capitalismo: você acha que há um limite para essa exploração? E qual seria esse limite?

Me parece que o limite que está sendo negociado atualmente é uma questão de consciência e aquiescência. O capitalismo já monetiza o eu até mesmo para pessoas que não participam das redes sociais — só de usar a internet significa que tudo que você faz está sendo rastreado e usado para algum lucro. Poderia, e provavelmente vai, ficar pior, com modelos de vigilância como Chinese Social Credit System, e isso só  pode acontecer se nós levantarmos as mãos e aceitarmos, em um sentido ético e espiritual, o que já existe.

Como você encara os protestos de movimentos como o Black Lives Matter e, na sua opinião, qual o lugar desses protestos nos Estados Unidos do século 21, em que um discurso pesado racista da extrema direita está instalado no centro do poder?

A luta pela igualdade racial na América — que também é uma luta contra a exploração do capitalismo e do imperialismo — é a mais importante história que já existiu neste país. O que vimos no verão, após o assassinato de George Floyd, é a continuação do trabalho que está sendo feito há séculos e é construído especialmente com o poder comunitário e com uma consciência social grande da luta do BLM desde os protestos de Ferguson, em 2014. Trump está no poder, a extrema direita colocou uma coleira no país, mas esse movimento está mostrando o único caminho possível para a nação sobreviver. E esse verão — em que cerca de 25 milhões de pessoas participaram de protestos contra o racismo e a brutalidade policial – mudou a América, sem dúvidas, de uma maneira que ainda vamos perceber.

Como você está lidando com a pandemia? Está assustada? Você acha que o mundo vai mudar ou, assim que tivermos uma vacina, voltaremos ao estilo de vida que nos conduziu para essa situação?

Enquanto escrevo, estou no nono mês de gravidez e, em poucos dias, vou para o hospital para induzir o parto. Eu nunca fiquei com medo em minha vida — a pandemia apenas reforçou a percepção de minha extrema sorte: estou apta a trabalhar de casa, em um trabalho que amo, estou segura e confortável no ambiente doméstico. Mas, claro, estou com o coração na mão nesse momento em que as proteções contra o despejo, por exemplo, expiram nos Estados Unidos enquanto nossos políticos debatem se tem valor tirar pessoas da miséria, estou com o coração na mão pensando sobre o rolo compressor sem sentido do sofrimento que já vimos na pandemia e que ainda está por vir. Eu acho que o mundo vai mudar sim, e acho que estamos famintos para voltar para uma certa versão do normal: os dois serão verdade. Mas não acho que tenha sido nosso estilo de vida que causou a pandemia: não é o fato de irmos a restaurantes e tomarmos transporte público para o trabalho que causou isso. Na verdade, foi o cerco do capitalismo global, a maneira como ele faz nossos governos e corporações desvalorizarem a vida que fez essa pandemia mais brutal para tantas pessoas do que realmente deveria ser.

Sobre feminismo, você é muito enfática quando fala da adoração de personalidades complicadas por parte do movimento. Você chegou a receber críticas por essa opinião? Como lida com essas críticas?

Certamente fui criticada, mas na verdade penso que é uma opinião muito simples — quase um senso comum, apesar de ter um monte de nós por trás disso, como eu tentei explicar no meu livro. Em geral, não me importo nem um pouco com as críticas ou com pessoas que não gostam do que escrevo. Há críticas ao meu trabalho com as quais aprendi muito e outras com as quais não me conecto, mas, de qualquer forma, discordância me parece algo natural, é a via normal do mundo.

Sobre jornalismo, um dos temas de seus ensaios, como você acha que a internet vai mudá-lo? Muitos dos grandes veículos impressos estão lutando para encontrar um novo modelo de negócios em que caiba um jornalismo de qualidade.Você vê luz no fim do túnel?

A internet já dizimou o jornalismo apresentando notícias como algo que as pessoas esperam ter de graça. Nos Estados Unidos, o capital privado está efetivamente destruindo a mídia local — comprando jornais, dividindo-os em partes. O Facebook e o Google tornaram a mídia independente on-line impossível economicamente por causa da maneira como eles interceptam e retém o lucro da publicidade. Sem uma regulação federal forte desses processos, estaremos olhando para um futuro na América no qual sobrará apenas três saídas até o fim da década. E isso para não mencionar o problema da censura política global, como ocorre com Maria Ressa e Rappler nas Filipinas. Parece haver uma mudança em relação ao modelo de assinaturas para autores individuais e publicações independentes, o que é algo, mas eu vou tocar o mesmo sino que sempre toco — a luz no fim do túnel envolve rejeitar a imposição do capitalismo pelo lucro máximo o mais rápido possível.

Na sua opinião, como novos canais como Whatsapp e Facebook estão modificando o consumo de notícias?

Não sei muito sobre o Whatsapp, porque não é realmente um canal de consumo de notícias nos Estados Unidos, mas em relação ao Facebook, tem sido absolutamente desastroso — as maiores páginas do Facebook têm sido, por anos, espaços incendiários, a maioria de pessoas da extrema-direita publica desinformação ridícula e memes. O Facebook fez mais do que qualquer outra entidade na história para convencer as pessoas de que não não existe essa coisa de uma realidade compartilhada ou uma verdade objetiva, e isso muda a maneira como as pessoas consomem notícias no mais profundo e epistemológico nível.

Nahima Maciel

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