Da escravidão à Lava Jato: sociólogo pensa o país de forma particular

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O problema do Brasil não estaria na corrupção herdada dos portugueses, mas na escravidão. Não estaria na maneira como fomos colonizados e sim na estrutura do sistema escravocrata implantado por aqui. E estaria, sobretudo, na desigualdade gerada por um projeto de país que, para funcionar, precisa manter grandes distâncias entre as classes pobres e as abastadas. Jessé de Souza não é unanimidade, mas é voz que tem sugerido uma nova maneira de olhar para os problemas brasileiros.

Sim, é dele o recém-lançado A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato, que Lula está lendo na prisão. Assim como é dele A ralé brasileira: quem é e como vive e A radiografia do golpe: entenda como e por que você foi enganado. Jessé de Souza participa da série de debates Diálogos contemporâneos nesta terça (17/04), às 19h, no Museu da República. Durante o encontro com o público, ele faz a palestra A formação do Brasil: do descobrimento aos tempos atuais – a herança cartorial, o patrimonialismo e a cultura de privilégios, tema que vem desenvolvendo em boa parte de seus livros.

É sério o que o sociólogo fala, embora, às vezes, pareça também bastante óbvio. Para ele, criminalizar a política acusando-a de ser prática corrupta e demonizar o estado enquanto o mercado é enaltecido como o salvador e, eventualmente, a vítima, é um erro. No raciocínio do sociólogo, a elite brasileira representa o mercado e, sempre que pode, assalta o estado. A corrupção na política, as malas de dinheiro entregues aqui e ali, são apenas a gorjetas da elite para os políticos por serviços prestados. Nesse cenário, a classe média é manipulada diariamente para acreditar em mentiras que ajudam o sistema a se manter.

Em A elite do atraso, Jessé parte da história do Brasil recente para sustentar a ideia. Em entrevista, o autor de 10 livros e ex-presidente do IPEA, que dirigiu no apagar das luzes do governo Dilma Rousseff, explica como chegou ao que chama de “uma interpretação do Brasil de outro modo” e fala sobre como a desigualdade faz parte de um projeto de país desenhado para ser eternamente patrimonialista.

Crédito: Ed Alves/CB/D.A Press

Entrevista: Jessé de Souza

Como olhar para o Brasil pelas lentes de A elite do atraso?

O livro faz uma interpretação da história do Brasil de outro modo. A história do Brasil foi montada em 1930 por intelectuais, começando na USP, criada pela elite paulistana que havia perdido o poder político para Vargas a partir de uma rebelião de classe média, que foi o tenentismo. Essa elite precisava do estado, porque é a elite que assalta o estado, assalta o orçamento, faz isenções fiscais para suas empresas, e isso nunca é percebido porque foi construída uma interpretação do Brasil que é ensinada na escola, e depois nas universidades, montada sobre uma gênese que é mentirosa: a de que o povo inteiro tem uma queda por corrupção que vem de Portugal. São coisas absurdas porque em Portugal, no século 14, não havia corrupção simplesmente porque não podia haver. A corrupção, no sentido moderno, é do século 18. Mas o povo acreditou nisso. E tudo isso vai desaguar na história do patrimonialismo, que é essa coisa do personalismo, como se tivesse uma cultura da corrupção no Brasil.

E qual a consequência disso?

Isso vai desaguar não no mercado, mas no estado. Vai dar a possibilidade de estigmatizar o estado e a política, enquanto o mercado fica sendo percebido como trabalho duro, honestidade, decência. Assim, você captura o imaginário da sociedade como um todo e forma uma falsa questão que vai organizar todas as outras e esquece que a questão principal de um país como o nosso é a escravidão.

Que papel tem a escravidão na sociedade brasileira até hoje?

É a escravidão que vai influenciar todas as outras instituições, a forma da família, do pobre, que é a mesma do escravo antes. A forma como a elite brasileira vê o próprio país é muito semelhante a como a elite escravocrata via o país, com essa coisa de saque, de rapina, do “eu quero o meu agora”. Não é uma elite como a francesa, a alemã ou a japonesa, que pensa o país a longo prazo. Toda elite fica com a maior parte do bolo no mundo todo, mas é muito distinto uma elite que está aí para o saque do país. Tudo isso é esquecido de forma a criminalizar e estigmatizar o estado e a política quando ela é ocupada por partidos que tenham a ver com interesses populares. Isso foi montado para derrubar Vargas. Com Jango foi a mesma coisa, e agora Lula e Dilma.

E como isso acontece?

O que mostra que a escravidão continua são as práticas. O que marca mais um sistema escravocrata? O ódio ao escravo. Alguém que você tem que explorar e, ao mesmo tempo, desprezar. Humilhar todos os dias. É exatamente isso que acontece com o pobre entre nós, até hoje. Ele tem que ver retirado seus direitos, não pode consumir, não pode ir pra shopping que a classe média frequente, não pode andar de avião, ir para as universidades. Foi isso que causou o golpe. Dizer que o golpe foi causado pela coisa moral da classe média com a corrupção é uma bobagem. Por que saíram milhões nas ruas com Lula e não saiu ninguém com Aécio e Temer? Então não é corrupção. E se  não foi corrupção, foi outra coisa. O PT e Lula representam uma pequena inclusão, que é histórica em um país como o nosso, que é doente por conta disso. E o ódio ao pobre é uma forma muito perversa de sociabilidade, você nega a quem não tem nada.

Você diz que a política não pode ser criminalizada, Por quê?

A política ganha a gorjeta do mercado, como  ficou demonstrado no caso das malas, supostamente para Temer e Aécio. A mala dos donos do mercado paga a política por serviços prestados. Como você faz com um lacaio. Então não pode transformar a política na questão importante. É claro, toda mentira tem que ter um grão de verdade e o grão de verdade dessa mentira, tendo a corrupção como a grande questão, é que se  rouba também na política. E claro que isso é reprovável, mas o que se rouba na política é uma gota no oceano se você compara com a sonegação de impostos dos ricos. São R$ 1,5 trilhão sonegados, além de isenções fiscais. E agora teve aí um trilhão para grandes empresas estrangeiras, latifundiários, bancos, o que significa a privatização dos lucros e a socialização das perdas para a sociedade como um todo. A Lava Jato não recuperou nem R$ 2 bilhões. Você percebe que é uma mentira montada para que a sociedade jamais perceba que está acontecendo.

Um dos temas de A ralé brasileira é a questão da herança imaterial: qual o peso dessa herança na desigualdade brasileira?

Normalmente, como você só percebe as classes pela renda, você, no fundo, não percebe nada. A renda não explica nada, é uma coisa que você tem quando é adulto. A infância da pessoa, a adolescência, o que aconteceu com ela, isso é que é importante saber. Quando falo de  herança imaterial, é isso: classe não é renda, é reprodução de privilégios. A elite que manda reproduz o privilégio do acesso à propriedade nas suas mais variadas formas. A classe média, que no fundo serve a essa elite no mercado e no estado, reproduz o conhecimento, altamente valorizado. E as classes populares reproduzem seu privilégio negativo de parco acesso a tudo isso, não tem estímulo em casa. E a família não tem culpa nisso, é a sociedade que abandona, que despreza, humilha. Quando você diariamente humilha alguém, você tira a autoiniciativa, a confiança dessa pessoa. Isso é uma herança imaterial e é extremamente importante, é ela que vai dizer se você vai se dar bem na escola ou no mercado de trabalho. Nada disso é consciente, mas essa herança imaterial vai criar redes de solidariedade entre os indivíduos e as classes, vai criar o preconceito com os de baixo, que não é explicitado, que é sentido.

Nahima Maciel

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