Pouco importa a página na qual você abrir Aqui: o tempo cruza o espaço de forma inusitada, então você estará sempre no lugar certo para começar. A graphic novel de Richard McGuire tem esse poder estranho de nos lembrar que o tempo não é linear (embora sejamos muito apegados a essa ideia de um minuto depois do outro) e atravessa o espaço sem pedir licença.
A sinopse imaginada por esse artista que durante décadas concebeu capas e ilustrações para a The New Yorker é bastante simples: quantas histórias pode conter uma casa e um terreno pelos quais passaram dezenas de seres humanos e suas experiências? É com isso que o artista trabalha. A cada página, McGuire conta um momento específico de uma narrativa pessoal. Em desenhos, claro. E abre janelas nas quais avança e retrocede no tempo. Naquela mesma sala daquela mesma casa há infinitas possibilidades vividas por sucessivas gerações, pequenos encontros (ou desencontros), conversas aparentemente insignificantes, cenas banais da vida em família que frequentemente se repetem pontuadas por detalhes que apontam as mudanças de época. É um romance quase sem palavras, com muitas imagens e inserções que provocam o deslocamento do leitor em janelas de flashbacks ou flashforwards, histórias sobrepostas e entrelaçadas que vão de uma família do século 21 aos índios que ocuparam o terreno décadas antes da chegada dos europeus.
McGuire criou a primeira versão de Aqui em 1989. Na época, o livro contava com apenas seis páginas. Em 2014, ele lançou uma edição ampliada dos quadrinhos. Dessa vez com 304 páginas. É essa nova edição que chega agora ao Brasil pela Companhia das Letras. McGuire não é um cara muito conhecido dos brasileiros e mesmo na cena novaiorquina faz parte de um contexto meio à parte, meio vanguarda, meio underground. Nos anos 1980, ele integrou uma banda chamada Liquid liquid cujo estilo “no wave” era uma resposta ao new wave e ao punk rock. Durou apenas três anos e um álbum. Já as ilustrações de McGuire estão há décadas na imprensa americana e europeia. O autor conta que teve duas inspirações fundamentais para criar o livro. Uma delas foi a própria família e a casa na qual os pais moraram por mais de 50 anos.
“Desenhei memórias e fotos de família, meus irmãos e irmãs, meus parentes e avós, amigos incluídos. Há trechos de diálogos dos quais lembro e momentos reais, mas o livro não é exatamente uma memória. Minha família é apenas uma pequena parte de um quadro muito maior. Meus pais viveram nessa casa por 50 anos, os índios americanos viveram ali por milhares de anos e os dinossauros, por milhões de anos antes disso. Essa vista expandida do tempo, claro, faz com que nos sintamos razoavelmente insignificantes, mas se isso nos fizer ficar mais alerta para nosso tempo, então não é algo tão negativo.”
Outra inspiração foi o livro Matadouro 5, do alemão Kurt Vonegut. No romance, o personagem encontra uma raça alienígena capaz de viver o tempo de maneira não linear. Quando olham para um ser humano, os tralfamadorians enxergam uma centopeia na qual a cabeça é um bebê e a cauda, uma pessoa idosa. Entre os dois, estão todos os estágios da evolução de uma vida humana, retratados ao mesmo tempo, encadeados como se acontecessem simultaneamente em um mesmo espaço. “Esse livro expandiu minha mente, mas houve outras muitas influências ao longo dos anos”, avisa McGuire.
Outro detalhe que aguçou a mente do ilustrador e permitiu que chegasse à técnica das janelas para sobrepor os tempos foi a tecnologia. Em 1988, um amigo contou sobre um novo computador que vinha com um programa chamado Windows. McGuire viu no recurso uma possibilidade para criar as as múltiplas vistas do tempo que queria imprimir em Aqui. “E eu achei que podia contar uma história de um espaço com uma tela dividida como aquelas você você vê em filmes, de maneira que o lado esquerdo poderia apresentar o tempo na frente e o lado direito poderia voltar no tempo. Escolhi um canto da sala porque a linha abaixo do centro poderia funcionar como uma linha divisória”, conta o artista. Aqui virou um ícone das histórias em quadrinhos, inicialmente uma experiência formal que, com o tempo, se tornou um clássico. Abaixo, o ilustrador conta como encara o livro que, mesmo depois de quase 30 anos da primeira versão, continua atual.
Aqui
De Richard McGuire. Tradução: Érico Assis. Companhia das Letras, 304 páginas. R$ 79,90
Você encara livros como objetos que podem ser lidos? Aqui parece carregar essa ideia….
Quando eu pego um livro, estou sempre muito alerta para a totalidade de sua presença física, a parte gráfica da capa, a lombada, a contracapa, a escolha do papel, a escolha do tipo e, claro, o conteúdo. Quando decidi expandir a história para a versão do livro, primeiro construí um pequeno modelo no espaço. Quando coloquei as duas paredes juntas, me veio a ideia de que as paredes estavam de frente para as páginas e que o canto da sala seria a dobra do livro. Fiquei excitado. Eu adorava a ideia de que o livro poderia se tornar um espaço arquitetônico e que, aberto, ele colocava o leitor dentro da sala. Acho que livros são objetos perfeitos, duraram até hoje porque funcionam perfeitamente: são fáceis de produzir, são portáteis, não precisam de outra energia além daquela do seu cérebro e podem conter o universo.
Aqui também é um livro sobre intimidade?
Eu queria que a história parecesse muito próxima e pessoal e, ao mesmo tempo, tivesse uma certa distância. Nossas vidas são construídas de todos esses pequenos momentos e muitas delas são razoavelmente banais. Isolando um momento, como o quebrar de um copo, faz com que pareça mais dramático. Eu queria saudar esses pequenos dramas, como uma cortina se abrindo ou uma luz entrando através da janela. Os momentos dos quais mais lembramos são os emocionais, talvez uma troca de palavras que tocou seu coração ou talvez um toque físico, um abraço, um beijo. Quando fiz a primeira história, foi mais como um experimento formal. Quando escolhi expandir essa história, sabia que teria que aprofundar minha pesquisa, emocionalmente inclusive. Foi quando entendi que minha família e a casa na qual cresci teria que estar no centro.
Como você descreveria Aqui? É quadrinhos? Uma narrativa? Um romance ilustrado?
É tudo isso junto, porque o livro tem um início e um fim, mas não um arco tradicional de história, é uma narrativa não linear. Não tem um protagonista tradicional, o tempo em si é o protagonista. O que eu esperava era criar o sentimento do tempo passado como se fosse um rio. Abrir o livro em qualquer ponto é como entrar em um rio de experiência. Esse tipo de vista simultânea do tempo é melhor expressa com quadrinhos.
O livro é cheio de detalhes, de desenhos pontuais, o leitor precisa estar atento mas, ao mesmo tempo, é um livro muito minimalista. Você gosta especialmente desse minimalismo?
Eu queria que ele fosse lido com facilidade e o mais claramente possível. Era importante para mim que o público encontrasse algum sentido no que estava acontecendo e conseguisse acompanhar, especialmente um leitor não acostumado a quadrinhos. Eu respeito o público e quero convidá-lo para o livro. Em alguns casos, usei desenhos mais simples porque eram necessários para ter esses contrastes na atmosfera.