Jai tem 9 anos e mora em uma favela de uma metrópole indiana. Certo dia, os coleguinhas de escola e de brincadeiras de rua começam a desaparecer. A turma do menino então se junta e incorpora todo o espírito dos detetives tantas vezes vistos em filmes na televisão para traçar estratégias de busca dos companheiros. As crianças são mais sérias em suas táticas e investigações do que a polícia, que encara os desaparecimentos como mais um fato corriqueiro na tragédia diária que assola as periferias dos centros urbanos indianos. Os detetives da Linha Púrpura é o primeiro romance da jornalista e escritora indiana Deepa Anappara. Uma “estreia formidável”, segundo o escritor Ian McEwan, mas também uma forma de jogar luz sobre um flagelo indiano pouco tratado na ficção.
Segundo a autora, uma média de 180 crianças desaparecem diariamente na Índia. “Essa é uma estimativa aproximada”, avisa Deepa, que é natural do estado de Kerala, no sul do país, e atualmente mora em Londres. “Esse número foi divulgado por várias instituições de caridade que trabalham com crianças. Provavelmente, é um número menor do que a situação real, porque muitos casos não são registrados pela polícia. Então, na verdade, não temos números concretos.” Deepa conta que os desaparecimentos acontecem há décadas e parte da explicação está na extrema pobreza e desigualdade que assolam a sociedade de países em desenvolvimento, como a Índia. Sequestros são comuns, mas há também casos de pais e famílias que entregam as crianças diante de promessas de uma vida melhor.
No entanto, o destino é quase sempre o trabalho escravo nas mais variadas indústrias, do carvão e mineração à de tecido, mas também em trabalhos domésticos. Entre 2021 e 2022, a Bachpan Bachao Andolan (BBA), instituição criada pela Nobel da Paz Kailash Satyarthi para o combate do trabalho escravo infantil, resgatou 4.399 crianças. “Um número grande de pessoas vive em condições realmente empobrecidas, como as retratadas no romance, e quando as crianças desaparecem, as pessoas não prestam muita atenção, especialmente na mídia em geral, porque são crianças pobres e essas histórias não são discutidas”, lamenta Deepa, que quis escrever uma narrativa de ficção sobre o tema para explorar algumas facetas da sociedade indiana nem sempre mostradas nas representações ocidentais. Os detetives da Linha Púrpura acabou eleito o livro do ano por veículos como Washington Post, The New York Times, Time e NPR. “Eu também queria mostrar o mundo a partir da perspectiva de uma criança.”
Jai é o narrador do romance. Mora com os pais e as irmãs em um barraco. A mãe faz trabalhos domésticos em um condomínio de luxo e tem sempre à mão uma trouxa com os pertences mais importantes da família, uma sacola que possa agarrar quando as autoridades colocarem abaixo os pedaços de papelão e madeira que serve de casa, situação comum nas favelas. Jai não se vê como vítima e sim como um esperto detetive, especialmente quando uma de suas irmãs desaparece. Além de enfrentar o desespero familiar, as crianças precisam também encarar um preconceito religioso que isola e desacredita os muçulmanos. Colegas de Jai viram suspeitos por não serem hindus. O drama visto pelos olhos da criança ganha um ar de fábula às avessas: não há recompensa para os que se comportam. Na Índia do primeiro-ministro Narendra Modi, o controle das narrativas inclui demonizar os muçulmanos e exaltar o nacionalismo hindu. Em entrevista, Deepa Anappara fala sobre o drama do desaparecimento das crianças, literatura na Índia e o perigo de um governo que flerta com o autoritarismo e as ideias extremistas de direita.
De Deepa Anappara. Tradução: Odorico Leal. Companhia das Letras, 376 páginas. R$ 89,90
Sobre o contexto que motivou o romance, é um tema que não é muito tratado de maneira geral nem pelo jornalismo nem pela ficção. Pode falar um pouco sobre essa realidade?
A Índia é um centro de tráfico de crianças: com o Nepal e Mianmar ao lado, há vários campos de refugiados nas fronteiras, onde é muito comum ver esse tráfico acontecendo. Se você ler qualquer um dos relatórios divulgados por organizações de direitos humanos sobre tráfico de crianças, verá que a Índia é um ponto de origem e um centro de trânsito para traficantes de crianças. Essas crianças podem ser empregadas em fábricas e muitos dos produtos que você compra no Ocidente são feitos por crianças nessas fábricas. Os pais, geralmente, são muito pobres e, às vezes, se alguém que eles conhecem se aproxima deles e diz “Podemos levar a criança e eu conheço um lugar onde ela será alimentada três vezes por dia”, eles ficam felizes em mandar. Em última análise, tudo se resume a pobreza. O fato de as pessoas não terem dinheiro suficiente para alimentar seus filhos, de não conseguirem trabalho, tudo se resume a isso, é aí que os traficantes operam e, infelizmente, até hoje, é muito difícil encontrar evidências contra eles. A polícia não age com força suficiente e, mesmo que eles sejam pegos, acabam sendo soltos.
E como falar disso na ficção evitando transformar a narrativa em um estereótipo da Índia?
Em relação aos estereótipos, há definitivamente essa associação da Índia com pobreza e espiritualidade, por exemplo, e existem certos clichês que são perpetuados no Ocidente. Vivi na Índia durante a maior parte da minha vida e sei que as pessoas estão muito conscientes desse assunto e de como são representadas na ficção, nos filmes populares no Ocidente. Espero que tenha conseguido mostrar todas as facetas da sociedade indiana. Você tem pessoas incrivelmente ricas no romance, embora não vejamos suas perspectivas, mas elas estão lá e isso é típico da sociedade indiana, você tem algumas das pessoas mais ricas do mundo e, ao mesmo tempo, há pessoas que não têm nada. Tentei representar e criar isso, mostrar que isso é apenas um aspecto da sociedade indiana. Também queria mostrar o mundo a partir da perspectiva de uma criança.
Uma questão que você aborda no livro é o conflito entre muçulmanos e hindus. É algo que tem piorado nos últimos anos, especialmente com o nacionalismo hindu do primeiro-ministro e a circulação do discurso de ódio nas redes sociais. Como a Índia tem lidado com isso?
Infelizmente, quando você tem um governo que apoia e instiga esses discursos, não há regulamentação, porque isso vem das autoridades. A Índia é uma democracia, mas está funcionando essencialmente como uma ditadura agora. Temos um primeiro-ministro que valida todas essas discriminações contra os muçulmanos e isso se tornou parte da narrativa nacional. Todas as políticas discriminam os muçulmanos. Recentemente, eles removeram dos livros didáticos as referências aos governantes muçulmanos. Estão tentando fazer parecer que sempre foi uma nação hindu, o que é absolutamente errado e não tem base histórica. Eles usam essas plataformas como o Twitter, Facebook e WhatsApp para espalhar desinformação sobre os muçulmanos. E isso vem do governo. Há tanta censura na sociedade, nos jornais, que, se você critica o governo, acaba preso. Poucas pessoas estão fazendo reportagens reais atualmente. A maior parte da mídia está funcionando como máquina de propaganda do governo, porque senão eles tentam fechar a organização. Há poucos jornalistas corajosos que continuam a fazer seu trabalho apesar de toda a resistência do governo, tentando corrigir essa desinformação.
E como lutar contra isso?
A tentativa de regular o discurso de ódio e a desinformação tem que vir do governo. Mas na Índia, temos um governo que está espalhando essa desinformação. Então, para onde vamos? Como indianos, estamos descobrindo que há poucos canais em que podemos nos informar, porque muita gente não está mais recebendo apoio do Judiciário. Não temos organizações que podem nos proteger do governo. Houve um esforço concentrado nos últimos 10 anos para sufocar todas as formas de dissidência. Infelizmente, me sinto bastante desesperançosa com a maneira como todas essas discussões estão sendo feitas. Nossa economia está indo muito mal, somos um país extremamente pobre, temos as mudanças climáticas, que são um problema enorme. Esses são os assuntos que deveriam ser discutidos, mas todo mundo está completamente distraído porque o governo diz algo sobre os muçulmanos e as pessoas passam todo o tempo falando sobre isso. É uma situação muito difícil e muito perigosa para os jornalistas que querem fazer seu trabalho. E, infelizmente, os governos ocidentais não estão criticando, assim como não criticaram a China por razões econômicas.
Não há liberdade suficiente para trabalhar?
Absolutamente não. Tecnicamente eles dirão que qualquer um pode dizer qualquer coisa, mas isso não é verdade. Nos relatórios publicados por associações de jornalistas nos últimos anos, a Índia está bem abaixo na lista de nações que têm liberdade de imprensa. E está bem alta em censura, porque isso é essencialmente o que tem acontecido. Quando eu estava trabalhando como jornalista na Índia, nós podíamos criticar o governo e sem enfrentarmos repercussões. Se algo não estava funcionando no governo, nós podíamos reclamar ou escrever um artigo sobre isso, mas você não pode mais fazer isso e há muita pressão sobre os editores para não publicarem as histórias. Há pressão nas próprias organizações.
Você saiu de lá por causa disso?
Não, eu saí antes disso. Mas quando eu era jornalista, viajei por Gujarat, o estado onde Narendra Modi era anteriormente o chefe de governo. Houve tumultos em 2002 e vários muçulmanos morreram nesses tumultos. Entre as pessoas consideradas culpadas na época, muitas eram membros do partido de Modi e quase todas foram libertadas recentemente. Entrevistei muitas das pessoas que sofreram durante os tumultos e é muito difícil para mim não falar sobre isso. Essa espécie de discriminação que você vê contra uma população inteira é uma tentativa concertada de acabar com suas vidas completamente.
A desigualdade social e a violência contra crianças são alguns dos temas do livro. Como você acha que a ficção pode tocar as pessoas? Você acha que pode gerar uma reação? Como é a leitura na Índia?
Na Índia, há muitos idiomas. Mais de 20, 30 idiomas diferentes, além de muitos dialetos, e também são publicados livros nesses idiomas. Muitos desses livros são lidos em inglês, porque o inglês é um idioma falado principalmente pela elite. Ou pelo menos, por uma porcentagem menor da população. Os livros em inglês, especialmente romances, não costumam ser muito populares. Existem romances comerciais que fazem muito sucesso, mas é muito mais difícil conquistar esse mercado com um livro como o meu. Eu diria que, em termos de críticas e respostas dos leitores, tem sido basicamente positivo. Eles disseram que o livro os fez olhar para o problema. Você vê isso todos os dias na Ìndia, vê crianças vendendo coisas em cruzamentos de trânsito, vê crianças na rua e acaba parando de notá-las. Acredito que a ficção pode desempenhar um papel em lembrar as pessoas de muitas coisas que tendemos a ignorar. Acredito que possa alcançar as pessoas de uma maneira que talvez um relatório de notícias não consiga, mas não acho que a ficção vá fazer o governo mudar de política. Como jornalista, se você estiver participando de uma campanha sobre o desaparecimento de crianças, especialmente na televisão, porque os políticos assistem, pode haver uma mudança de política. É muito mais difícil fazer isso com livros, porque as pessoas não leem tanto. Essa é uma verdade lamentável.
E por que você escreveu o livro em inglês?
É uma língua que conheço desde criança. Não cresci falando inglês, mas sempre escrevia em inglês porque fomos colonizados pelos britânicos. É uma língua que existe na Índia e, se você quiser conseguir empregos ou se quiser alguma mobilidade social, você precisa saber inglês.
Como sua experiência jornalística ajudou na construção dos personagens?
Acho que se eu não tivesse essa experiência, obviamente, não acho que eu poderia ter recriado o cenário ou criado esses personagens, porque todos eles vieram das experiências e entrevistas que conduzi como jornalista. Foi muito difícil para mim escrever o final do livro porque eu vi o que acontece na vida real e conheci pais cujos filhos ainda estão desaparecidos. De certa forma, não pude me comprometer em ser uma escritora de ficção 100%, essa é uma verdade com um romance como este, porque grande parte dele é baseado na realidade e no que vi como jornalista. O fato de eu saber que pessoas estavam passando por algo assim e estavam enfrentando a incerteza de não saber onde as crianças estavam, eu queria ser respeitosa com isso.
Nascida em Boston, uma das cidades mais literárias dos Estados Unidos, terra de Edgar Allan…
Como o mundo funciona — Um guia científico para o passado, o presente e o…
Romance, ciência, história e contemporaneidade: o Leio de Tudo selecionou oito publicações recentes que merecem…
Depois de cinco anos escrevendo o que chama de “livro-pesquisa”, Santiago Nazarian resolveu mergulhar em…
Saia da frente do meu sol De Felipe Charbel. Autêntica Contemporânea, 136 páginas. R$ 38,90…
Um episódio real e chocante despertou no português Miguel Sousa Tavares a urgência de escrever…