Clarice, de Roger Mello: o poder da leitura

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Em Clarice, de Roger Mello, nada foi pensado ou planejado de acordo com o momento atual, mas é sintomático que o autor lance seu novo livro logo agora. Destinado a crianças e adultos, o livro traz a história de uma menininha cujo nome foi inspirado em Clarice Lispector e cuja vida na Brasília da década de 1960 ou 1970 está condicionada aos efeitos da ditadura. Com lançamento neste sábado (19/05), às 16h, na Fnac (Parkshopping), Clarice é um presente para Brasília (onde o autor nasceu e cresceu) e um alerta para o Brasil. É sobre o poder da leitura e dos livros o novo livro de Mello.

A história gira em torno de Clarice, abandonada pelos pais não se sabe ao certo por que – o pai pode ser um militar ou simpatizante do regime que a menina chama de E.L.E.S e a mãe desapareceu, com toda a conotação carregada por essa palavra naquelas décadas. O projeto gráfico e as ilustrações são assinados por Felipe Cavalcante, sobrinho de Mello e um dos integrantes do Espaço Laje. Como livros escondidos são uma constante na história, ele cobriu a capa original, vermelha e escrita em coreano (as referências orientais de Roger Mello vão até a China…) com uma capa falsa. E usou cores da cartela pantone – azul e laranja – por todo o livro. Foi uma maneira de deixar claras as influências do tio ilustrador e seu gosto por cores fortes.

A menina é cuidada pela tia e por um primo. São eles que, aos poucos, introduzem Clarice no mundo dos livros, mas também na ideia de perigo que eles representam. Eventualmente, é preciso se livrar deles, pois são considerados subversivos. São, também, uma espécie de fonte da vida, e isso fica bem claro para e personagem. As contradições ecoam na cabecinha de Clarice. Ela vai percebendo, não sem um certo sofrimento, que nem tudo é branco no preto, bom ou mau, certo ou errado. A linguagem de Roger Mello é dura, mas é também cheia de delicadezas, ironias e perspicácias.

Brasília não é apenas o cenário. A cidade assume papel de personagem. Com muita acuidade, o autor conduz o leitor pela história recente do próprio Brasil e das coisas que viu e viveu. Trata-se de uma ficção com boa dose de realidade, permeada por uma inocência própria não apenas da infância, mas da surpresa quando se descobre o quanto o atroz pode ser real, ou o quanto a realidade supera a ficção.

Há diálogos de uma candura notável entre Clarice e o primo, Tarso. Diante de um desenho animado russo exibido no Cine Brasília, ele constata, com certeza, que o filme não foi cortado. E explica: “O pai de Alice corta as cenas que ele não quer que os outros vejam. É muito fácil de perceber os cortes”. Perplexa, Clarice constata que o pai da amiga trabalha para E.L.E.S e Tarso emenda: “Deve trabalhar. Ele disse que cortam o filme inteiro quando acham que o filme é subversivo”. As crianças não entendiam muito bem a palavra “subervsivo”, mas gostavam de repeti-la. E Clarice, sagaz, compara os filmes cortados com os livros atirados da ponte pela tia para concluir, sobre o pai de Alice, que “é o mais subversivo de todos E.L.E.S”, já que assiste a todos os filmes.

Os livros vão se tornando personagens da história tanto quanto Brasília, sua seca e seus cobogós. A menina sabe que o pai escondia os livros da outra Clarice para a mãe, que adorava a escritora. A garota só não entende como alguém pode desaparecer por causa de um livro. Especialmente um vermelho, segundo o que ouvira, certa vez, em uma conversa. Na cabecinha singela de menina, ela liga alguns pontos: “O Chapeuzinho Vermelho deve estar proibido então (…). Chapeuzinho Vermelho subversiva. O lobo ficava confuso”. “Muito desse nonsense vem do documental”, explica Roger Mello. “O que é mais inspirado no real é o nonsense.”

Além de Clarice Lispector, Burle Marx, cujo sobrenome suspeito também está em um certo livro encontrado pelas crianças, Maria Martins, responsável pela escultura do Itamaraty com a qual a personagem trava diálogos imaginários, aparecem no livro. “Essas figuras são referências de Brasília. Elas participaram da criação da cidade e deixaram uma mensagem subliminar. Existe um pensamento visual que é subversivo”, brinca o autor.

Clarice é uma história feita de ausências. Ausência dos pais, dos livros, da liberdade. “A ideia é não tomar partido. O partido é uma liberdade”, avisa Mello. “E é para que as pessoas possam ter os livros que elas queiram ter. Que eles não sejam escolhidos por outros. Fala da distopia de um governo autoritário. E, agora que nosso país se polariza, me parece que trazer de novo essa história é importante. Não foi pensado. Até porque esse reacionarismo sempre existiu. Só que agora ele está exuberante.”

Clarice de Roger Mello

Ilustrações: Felipe Cavalcante. Global Editora, 124 páginas. R$ 59,90

Lançamento neste sábado, às 16h, na Fnac (Parkshopping)

Nahima Maciel

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