O narrador é um intelectual paulistano, pai de um rapaz que se envolve com drogas na adolescência. Como ele e a mulher não conseguiram ter filhos biológicos, decidem adotar uma criança. Fazem uma adoção “à brasileira”, um esquema com alguém que conhece alguém. Registram o bebê como filho biológico, apesar de ilegal. Mas essa é a parte menos importante. A mais relevante é o desejo e o empenho em construir uma família. O casal se dedica a essa arquitetura com muito amor, mas o amor não é suficiente para corrigir os desvios da vida.
Fruto de uma rejeição e de uma gravidez marcada pela dependência química, a criança nasce frágil, se recupera graças a tudo aquilo que uma renda de classe média alta pode proporcionar, mas mantém a fragilidade emocional. Uma sociedade preconceituosa e as constantes rejeições sociais ao menino que, por conta da cor da pele, é frequentemente confundido com bandido nas calçadas dos bairros nobres de São Paulo, não ajudam muito. Há momentos contundentes na narrativa, constatações que esse pai jamais teria caso não tivesse adotado um rebento da desigualdade para a qual o Brasil insiste em fazer vista grossa. Estariam as crianças condenadas a serem adultos infantilizados graças à postura dos pais, que os colocam em pedestais? Ate que ponto a psicologia praticada para tratar dependentes químicos não se resume a um meio de controle social? E como chegamos ao ponto de a cor da pele definir quem fica ou sai da prisão?
Na adolescência, o filho se envolve com drogas e, aos poucos, deixa para trás o que se anunciava como um talento musical. É expulso da escola de elite na qual estudava, rouba amigos e família para comprar crack e, aos poucos, sucumbe ao “paraíso artificial” da narcodependência. A expressão, repetida pelo narrador, faz parte da tentativa de compreender os caminhos do menino, tentativa incansável e amorosa.
O processo político pelo qual passamos nos últimos dois anos realmente sugere que viramos uma sociedade infantilizada.
Percorrer os meandros da dependência não estava nos planos do pai e é com erros, tropeços e ingenuidade que ele mergulha nesse mundo. A origem judaica e o fato de o filho ter sido registrado como biológico facilita um escape para Israel, uma última tentativa desesperada de afastar o rapaz do vício. Mas a dependência não é uma questão de lugar e é nesse afastamento forçado e doloroso que o pai percebe sua impotência e escreve a carta com a qual abre o livro. As reflexões sobre culpas, origens, circunstâncias que macularam a alma desse jovem povoam os pensamentos do pai e o autor é muito corajoso ao descrevê-los.
Não há final para a história, como não há final para certas histórias, embora um desfecho, feliz ou não, seja irrelevante para a força do texto de Kucinski. Pretérito imperfeito, e esse tempo verbal diz muito sobre o que deveria ter sido e não foi, é para se ler de uma só vez, com fôlego e coragem. Assim como em K – Relato de uma busca, o autor parte de uma história pessoal, ou “vivida”, como ele diz. “É uma história que ainda não terminou e na qual as questões centrais são de natureza pessoal e até intimista e não política ou ideológica. Daí a necessidade de um maior recurso à invenção”, explica. Abaixo, ele fala sobre as relações entre pais e filhos que povoam seus romances, a escrita baseada na vivência e sobre o processo de aprendizagem do narrador.
Pretérito imperfeito
De Bernardo Kucinski. Companhia das Letras, 152 páginas. R$ 39,90
Pode contar como surgiu a ideia/desejo de narrar a história de Pretérito imperfeito?
Surgiu num repente, da mesma forma como K, a partir da carta ao filho, que abre a narrativa. Depois desse impulso, inteiramente ficcional, e que saiu de uma vez só, foram surgindo as reminiscências, elaboradas uma de cada vez, como acontece com freqüência na criação literária. Neste caso a narrativa logo assumiu a forma de um processo de aprendizagem, que o narrador vai compartilhando com o leitor; o título de trabalho do manuscrito era O livro do aprendizado.
A relação – sempre tensa, complexa e cheia de lacunas – entre pais e filhos é uma constante nos seus romances. Pode contar o que é tão interessante para você nessa dinâmica?
Escrevi também ficções de outra natureza, como a novela policial Alice e o folhetim Mataram o Presidente, mas é verdade que a relação pais filhos está muito presente no que eu escrevo, inclusive nos contos. Penso que isso ocorre porque é a relação que mais profundamente mexe conosco, quando somos filhos e quando viramos pais.
Pretérito imperfeito traz várias questões importantes para a sociedade brasileira contemporânea: a dependência química, a questão da adoção à brasileira, o racismo e a discriminação. Há uma crítica social embutida no romance, embora ele seja, obviamente, muito mais que isso?
Se houve alguma intenção, foi a de um acerto de contas comigo mesmo, ou até de autocrítica, não propriamente de crítica social. As três questões, racismo, adoção e dependência química, são tão complexas e de solução tão difícil que não me propus a fazer uma crítica ao modo como são conduzidas aqui ou em outros países.
Como encara a maneira como o governo brasileiro lida com a questão da dependência química? E das internações forçadas? Existe alguma maneira de essas políticas públicas serem eficientes?
Não sou especialista no assunto e conheço pouco do que se faz. Mas do pouco que conheço deduzo que estamos muito aquém de outros países no tratamento da dependência química, em especial em relação aos recursos alocados. Creio que a dependência química deveria ser encarada como uma epidemia de grandes proporções, como foi a tuberculose em outros tempos, e não como um mal que afeta grupos pequenos ou à margem. Também penso que nossa abordagem, punitiva e moralista, é equivocada e prejudicial. A manifestação extrema desse equívoco é a internação forçada.
O senhor escreve: “Como para compensar, minha geração pôs a criança num pedestal, como um pequeno Deus”. E mais adiante fala em síndrome de Peter Pan e sociedades de adultos infantis. A sociedade, ou melhor, a classe média brasileira sofre as consequências disso? Somos uma população de adultos infantilizados em consequência de tratarmos as crianças como pequenos deuses?
O processo político pelo qual passamos nos últimos dois anos realmente sugere que viramos uma sociedade infantilizada. Não só nos, os americanos também, ao elegerem um Trump a partir de um discurso infantil, primário e fanfarrão. O fenômeno, portanto deve ser universal. Talvez porque tudo nos é dado hoje como prato feito, e a cultura nos é oferecida como entretenimento para consumo rápido e feliz , não como alimento de reflexão. A única utopia que nos é sugerida é a do sucesso estritamente pessoal, o que, de fato, só poderá ser alcançado por alguns poucos.
“Nossa polícia é zelosa em flagrar garotos com maconha. Se lhes parecem filhinhos de ricos, extorquem sob a ameaça de prisão. Se são negros ou mulatos ou parecem pobres, processam o flagrante, para mostrar serviço e compensar o que antes não fizeram”: o que essa constatação diz sobre a sociedade brasileira? O senhor enxerga alguma possibilidade de realmente resolvermos o problema da desigualdade no país?
Não no meu horizonte de vida. A oportunidade que tínhamos está sendo destruída em ritmo acelerado e de modo inclemente.
Como o senhor encara o futuro político próximo do Brasil? Estamos prestes a dar uma guinada em direção à extrema direita? O que isso representa? O que isso diz sobre o Brasil?
Não é possível prever o que vai acontecer. Quem pensa que sabe o que vai acontecer está muito mal informado. Feita essa ressalva, creio mais numa deterioração progressiva do tecido social, num aprofundamento e espalhamento da anomia, do que numa guinada específica para a direita ou para a esquerda.
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