Vladimir e Zé Lins

Publicado em Crônicas
Credito: Paulo de Araujo/CB. Diretor Vladimir Carvalho mostra cartaz do filme O engenho de Ze Lins, no  Festival de Brasília do Cinema Brasileiro em 2007.

 

 

Severino Francisco

 

Durante a quarentena, redescobri José Lins do Rego e percebi que ele toca no coração das grandes questões brasileiras da atualidade, de maneira dramática: a herança da escravidão, a desigualdade social, a religiosidade, o despotismo, a loucura e a educação. Mas não é a seco; é com pungente e brasileiríssimo humanismo. Zé Lins é o nosso Proust paraibano em busca do tempo perdido da civilização do açúcar.

 

A sua obra exala a dor da alma nordestina. Quem quiser conhecer o Brasil precisa ler a ficção de Zé Lins, de ponta a ponta. Liguei para Vladimir Carvalho com o objetivo de conseguir uma informação pessoal. No entanto, a certo momento, fiz menção a Zé Lins e o cineasta me contou uma história que tenho de repassar.

 

Vladimir é de Itabaiana, na Paraíba, cidade vizinha de Pilar, onde nasceu Zé Lins. Foi em Itabaiana que Zé Lins fez o curso primário, na primeira década do século passado, como interno do afamado Instituto Nossa Senhora do Carmo, dirigido pelo temível professor Maciel.

 

Nos anos 1940, Seu Lula, pai de Vladimir, que era leitor voraz e tinha espírito arejado, lia para os filhos, depois do jantar, trechos dos livros de Zé Lins, principalmente do romance Doidinho, totalmente inspirado na experiência do escritor no colégio interno, verdadeira prisão para um menino de engenho criado em liberdade. Não havia televisão na época e a escuta do rádio ia só até 10 da noite,  quando o chamado “motor da luz” parava de funcionar.

 

O pai de Vladimir intercalava a leitura com acréscimos do que teria testemunhado, porque, supostamente, havia sido colega do escritor na tal escola. Tinha a imaginação solta e fabulava descaradamente. Contava o episódio em que o menino Zé Lins  fugia do colégio, ia até a estação da Great Western e voltava escondido no trem para casa do avô no Pilar.

 

Mestre Lula era mais de 10 anos mais novo do que Zé Lins, portanto, não podia ter sido seu colega. Mas Lula era encantador e praticamente hipnotizava. Vladimir ouvia essas histórias embevecido; para ele, aquele menino inquieto e audacioso era um herói, sonhava com o garoto arteiro.

 

Na verdade, começou a fazer uma leitura estropiada das primeiras linhas dos romances Doidinho e Menino de engenho, alternadas com as tentativas de ler os balões  dos quadrinhos de Brick Bradford, publicados nos domingos no Jornal do Commércio, do Recife, que mestre Lula assinava. Foi assim que se alfabetizou, entre o pop da época e Zé Lins.

 

Do herói Bradford se livrou, mas a presença dos livros de Zé Lins o acompanhou pela vida. Conserva, fanaticamente, todas as edições. Quando se tornou adolescente, Vladimir se olhava no espelho e descobria traços fisionômicos de Zé Lins, cujas fotos de juventude via estampadas nas revistas da época.

 

Bem depois sofreu como um condenado durante a agonia do escritor, hospitalizado no Rio de Janeiro, com os jornais dando todo dia o boletim médico. Vladimir tornou-se Flamengo doente por conta do fanatismo de Zé Lins pelo Mengão. Chorou com a notícia de sua morte no Hospital dos Servidores.

 

Portanto, Zé Lins é passional e inarredável memória na cabeça de Vladimir. As próprias circunstâncias se impuseram: em 2003/2004, Vladimir filmou o magnífico documentário O engenho de Zé Lins, na tentativa frustrada de se livrar do ilustre fantasma. Ilustríssimo fantasma que concedeu a honra de visitar também este cronista isolado durante a quarentena.

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