No início dos anos 1960, Vladimir Carvalho mostrou uma escultura de sua lavra para o colega e amigo do curso de filosofia na Universidade Federal da Bahia, Caetano Veloso. Ferido pela beleza da peça, Caetano manifestou a admiração em forma de incredulidade: “Mas, Vladimir, tem mesmo certeza de que foi você quem fez esta escultura?”
Vladimir Carvalho é um cangaceiro paraibano que, em vez do fuzil, usa a câmara de filmar. Mas poucos sabem que dentro do cineasta existe um desenhista, um pintor, um gravador, um entalhador e, sobretudo, um escultor.
De qualquer pedaço de madeira abandonado, ele arranca figuras pungentes de Jesus Cristo, de São Francisco, de São Miguel, de Nossa Senhora, de Dom Quixote, de Sancho Pança, de Antônio Conselheiro, dos beatos, de violeiros, de Lampião, de Maria Bonita e de Corisco. Parece uma galeria de personagens crispados saída diretamente de Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha.
A descoberta da expressão plástica irrompeu, abruptamente, na vida de Vladimir, da maneira mais inesperada. Em 1964, estava com o cineasta Eduardo Coutinho, no interior de Pernambuco, nas filmagens do documentário Cabra marcado para morrer, quando estourou o golpe militar. Foi um Deus nos acuda. Todos fugiram para não ser presos.
No entanto, Vladimir era um cabra marcado para viver. Levou Dona Elisabeth e os filhos, personagens do filme, para o Recife, e se refugiou em um sítio próximo a Campina Grande, na Paraíba. Evitava se expor para não despertar suspeitas. A inação tornava os dias intermináveis e, a certa altura, ao descobrir um pé de cajá e algumas tábuas de cedro, para não enlouquecer, começou a desentranhar personagens míticos da madeira.
O próprio Vladimir se surpreendeu com a habilidade e quase se fez a mesma pergunta de Caetano Veloso: “Será que sou eu mesmo quem faz essas esculturas?”. Na verdade, a veia artística era herança direta do pai, Luis Carvalho, paraibano de Itabaiana, mistura desconcertante do visionarismo de Dom Quixote e do senso pragmático e empreendedor de Sancho Pança.
Lula, para, os íntimos, era jornalista, ilustrador, cinéfilo, pintor, inventor, entalhador, escultor e dono de fábrica de móveis. A infância de Vladimir recendia a cedro, porque o pai sempre entalhava ou extraía algum personagem da madeira.
Vladimir não pertence à família dos mornos da parábola bíblica, com passaporte carimbado para o inferno; ele é épico, nervoso, inconformado e inflamável. Não é um artista primitivo; é formado em filosofia e iniciado nas especulações eruditas da estética. Sensibiliza-se com o estado de arrebatamento, de dramaticidade e de transfiguração dos santos, seres esteticamente translúcidos.
Mesmo toscos na matéria bruta da madeira, no corpo contorcido, na agonia do martírio e na súplica aos céus, ele sugerem um halo de luz na cabeça e o desejo de transcendência nos olhos.
Sem qualquer pretensão de ser reconhecido como artista plástico, Vladimir não expõe e nunca vendeu nenhuma obra. Mas trabalha com a devoção e a inocência de um amador, no sentido essencial de amante, de enamorado da arte.
Faz porque se sente tocado, de maneira compulsiva, pela paixão artesanal de arrancar personagens míticos da madeira ou do papel. O traço e as figuras são bruscas, ríspidas e rústicas, em fina sintonia com as imagens de luz estourada e tremida de seus documentários.
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