Severino Francisco
Como já confessei neste mesmo espaço, eu sou um usuário, não disso que vocês estão pensando, mas do transporte público. Estava dentro de um ônibus, em pé, quando me encontrei com o Zé Ivan, uma espécie de Dom Quixote do Cerrado, de quase dois metros de altura. O Zé fala baixo, mas com uma flama na voz e uma chispa nos olhos, pois está sempre envolvido apaixonadamente em algum desafio solidário.
Pergunto a ele por que toma ônibus. Se quisesse, Zé Ivan poderia circular em um daqueles carrões importados, que segundo Nelson Rodrigues, têm cascata artificial, golfinho acrobático, foca que faz embaixada com a bola no nariz e um mordomo que se abana com o Diário Oficial. Mas o Zé explica que deixa o carro na garagem porque lidera uma campanha para reduzir a emissão de gases poluentes na atmosfera e, com isso, em cinco anos, economizou cerca de 2.500 litros de gasolina.
Quer ser a prova viva de que todos podem fazer o mesmo. Zé Ivan cresceu na onda de revoluções por minuto da década de 1960, usou cabelos compridos, era fã de Jimi Hendrix e Janis Joplin. No entanto, as suas revoluções ou microrrevoluções são pacíficas, nada têm do panfletarismo e de insurreições das mesas de bar da chamada esquerda festiva da década de 1960.
Ele vem de uma família católica fervorosa e só trabalhava com pequenos projetos, modestos, franciscanos, viáveis, sempre animados por uma compaixão pelo outro. Seguiu de maneira quase religiosa os ensinamentos do sociólogo Betinho e foi um apóstolo do Fome Zero no Cerrado. Arrecadava toneladas de alimentos. O telefone divulgado na tela da tevê era o da casa, os integrantes da equipe, quando existiam, eram dois ou três gatos pingados. A sede da campanha ficava em sua cabeça.
Sob a inspiração um outro ídolo, Mohammad Yunus, o Prêmio Nobel de Economia, se meteu em uma nova cruzada, desta vez em defesa do microcrédito, em um convênio entre a Arquidiocese de Brasília e o BRB, desenhado por ele, durante o governo de Cristovam Buarque. Nada de financiamentos milionários.
O Zé levava um banquinho nas costas (para sentar-se, mas também para satirizar as instituições bancárias megalomaníacas) e se mandava para a terra vermelha da Estrutural, do Recanto das Emas, do Varjão e do Paranoá. Lá, acomodado no banquinho, dava aulas sobre microcrédito para artesãos, costureiras, pipoqueiros, barbeiros e afins. O financiamento começava com R$ 100 e vários decolaram carreira como empresários.
Sempre conviveu com a terra vermelha do Cerrado, a mesma que não saía dos pés depois dos banhos mal tomados de criança que brincava o dia inteiro na capital recém-inaugurada. O Cerrado começava do outro lado da L2 Sul. A terra estava incrustada na pele, misturada com a culpa que carrega pelo único crime que cometeu: o abate passarinhos com estilingue.
Por isso, não estranhe quando vir o Zé Ivan parado no meio da L2 ou da Esplanada. A culpa foi tanta que ele se transformou quase em um gnomo, apesar de seus quase 2 metros de altura. Conhecia centenas de espécies nativas, fez reflorestamento por conta própria e protegeu os pássaros com o desvelo de um São Francisco de Assis. Ninguém se espantaria se as tesourinhas, os anuns, os canários, os sanhaços, pintassilgos e outras aves do Cerrado passassem a pousar na cabeça, nos ombros e nos braços do Zé Ivan.
PS: Zé Ivan nos deixou na quarta-feira. Mário Quintana disse que a morte não melhora ninguém. No caso, não precisava. Zé Ivan sempre foi uma pessoa admirável.

