Poeta das imagens

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Severino Francisco

Com uma foto, Sebastião Salgado, que nos deixou nesta semana, tinha o poder de condensar a tragicidade, a dramaticidade ou o lirismo de uma situação. Realmente, ele tirou fotos que suscitam mil palavras. São carregadas de sugestões poéticas. Nunca terminam se ser olhadas. A cada mirada, renovam o mistério.

Algumas vezes, a gente esquece que Sebastião Salgado era um fotojornalista. Ele dignificava o jornalismo com suas imagens cruas ou líricas, impregnadas de pungente humanismo. Preferiu a foto preto e branco do que o apelo à cor para ater-se ao essencial e não se dispersar nas seduções fáceis. Era como se fosse um Graciliano Ramos com uma câmera na mão fotografando a palo seco.

No entanto, essa recusa aos artifícios não significava, em nenhum momento, ausência de afeto. As fotos de Sebastião Salgado transmitem um profundo humanismo e um profundo amor pela realidade. As mães africanas aparecem em um campo de refugiados na Etiópia em um atmosfera surreal como espectros tangidos pelo destino arrastando as crianças. Os trabalhadores surgem com os corpos tatuados de carvão.

Garimpeiros se apinham em escadas de corda improvisadas na subida de um morro de Serra Pelada numa cena apocalíptica. Uma onça que se mistura tão indivisivelmente ao rio no nado que se transforma em um rio-onça-corrente. Não é apenas o fotógrafo da denúncia; é também o poeta das imagens epifânicas da natureza.

Sebastião Salgado acompanhou e fez um registro sensível das mais importantes transformações do mundo no século 20 e no século 21: a estupidez das guerras, a onda de refugiados causada pelas guerras, o trabalho que desumaniza, a gênese da natureza intocada e as ameaças de extinção da humanidade. A beleza de suas fotos não é para enfeitar; é a beleza arrancada da verdade dos fatos. Ele tirou fotos para nos ensinar a ver o outro com humanidade, mesmo nas situações mais degradantes. E para atiçar o nosso inconformismo com as injustiças sociais.

Ao lado da esposa Lélia, a partir de 1998, conseguiu reflorestar trechos da Mata Atlântica em uma fazenda da família, em Aimorés, Minas Gerais, onde nasceu. Tudo estava devastado pelas plantações. Botou a mão na massa e mostrou que se houver consciência, compromisso com a humanidade e vontade de fazer era possível restaurar o equilíbrio da natureza.

Com o reflorestamento, o que era insustentável tornou-se sustentável. A biodiversidade foi restaurada, os animais e os pássaros voltaram à area da Bacia do Rio Doce. A pedido de Sebastião, Gilberto Gil compôs a canção Reflorestar: “Manter em pé o que resta não basta/Que alguém virá derrubar o que resta/O jeito é convencer quem devasta/A respeitar a floresta/Manter em pé o que resta não basta/Que a motosserra voraz faz a festa/O jeito é compreender que já basta//E replantar a floresta”.

Mas, apesar de ter mostrado que era plenamente viável recuperar a natureza, Sebastião era cético quanto à disposição dos humanos em realizar as ações necessárias, pois a maioria é movida pela ganância, insciência e egoísmo. Em entrevista à repórter Nahima Maciel, ele expressou a lucidez dura que aparece em muitas fotos que tirou: “Não estou seguro que o ser humano vai sobreviver, mas não tenho mais uma preocupação se ele vai sobreviver ou não. Não tenho mais essa decepção que eu tive quando terminei o Êxodus, onde eu estava totalmente concentrado só no ser humano. Hoje, não é importante se o ser humano terminar, o importante é que o planeta vai se refazer das mazelas que criamos nele, vai reconstituir o desequilíbrio que nossa espécie provocou”.

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