Otto e o golpe

Publicado em Crônicas

Severino Francisco

O mineiro Otto Lara Resende é um grande escritor, mas o personagem sempre rivalizou e, algumas vezes, superou o escriba. Nelson Rodrigues exaltava tanto o brilho das frases do amigo que dizia ser necessário a presença de um taquígrafo acompanhando o Otto 24 horas por dia para registrar até os seus suspiros: “O mineiro só é solidário no câncer”, é a mais célebre frase atribuída ao Otto por Nelson Rodrigues.

Mas existem muitas outras cintilantes de humor. Quando ocupou o cargo de adido do Brasil em Portugal, costumava descrever a função dessa maneira: “Estou adido e mal pago”. Se estivesse em casa e não quisesse conversa, atendia o telefone da seguinte maneira: “Não estou”. E pimba: desligava o aparelho na cara do interlocutor. Contudo, era extremamente gentil e se recebesse um “bom dia”, tomava o cumprimento como a senha para uma conversa pra lá de marrakeshi.

Dizia que entrou para o jornalismo como um cachorro que encontra a porta da igreja aberta e vai em frente. Reza a lenda que ele trabalhou como editorialista em dois jornais concorrentes, à tarde, descia o sarrafo em um e, à noite, respondia com veemência a provocação no outro, polemizando consigo mesmo.

O Otto morreu em 1992, mas deixou um assessor atento, obsessivo e risonhante para cuidar do seu legado. É Francisco de Souza, o Chiquinho do Cedoc do correio. Todos os dias, ele espana, tira o pó e lustra as frases do mestre para que elas mantenham o fulgor original. Do outro lado da vida, felicíssimo com a badalação, acompanhado pelos amigos Rubem Braga e Fernando Sabino, o Otto finge descontentamento: “Afinal de contas, Chiquinho, por que você me persegue?”

Pois bem, o Chiquinho me repassou uma história muito interessante sobre as relações escorregadias do Otto com o golpe militar de 1964. O episódio é evocado em uma nota escrita pelo colunista social Ibraim Sued. Segundo ele, em um dia particularmente azedo, para estupefação geral, o matreiro Otto tomou uns pileques e começou a espinafrar o governo do regime militar. Ficou tão entusiasmado com a flama retórica que passou a dirigir a pontaria das críticas ao então presidente Castelo Branco.

A certa altura, um amigo cutucou o Otto e pediu: “Fala mais baixo porque está todo mundo olhando”. Naquela época, era perigoso se expor dessa maneira, pois nos bares sempre poderia estar infiltrado algum agente do SNI, o famigerado Serviço Nacional de Informação. Mas, para o assombro de todos, o Otto não se intimidou.

Pelo contrário: encarou a plateia, olho no olho, e berrou de maneira ainda mais enfática: “É, meus amigos, vocês estão admirados. É isso mesmo. Eu sou um homem corajoso e digo o que penso. Não tenho medo de nada e muito menos de militares. E querem saber o meu nome? Eu me chamo José Aparecido”.

José Aparecido era um grande amigo do Otto e, mais tarde, seria governador do Distrito Federal. Dito isso, o Otto saiu de fininho do restaurante e sumiu na noite sem deixar rastros nas ruas do Rio de Janeiro.

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