O jabuti da distopia

Publicado em Crônicas

 

Severino Francisco

Incluíram um jabuti no projeto do arcabouço fiscal para retirar parte das verbas que Brasília recebe do Fundo Constitucional. E, como todas as operações do gênero, ele foi urdido na calada da noite e apresentado abruptamente pela vontade soberana do relator Claudio Cajado (PP-BA), sob a complacência ou a cumplicidade dos colegas do parlamento. A excelência afirma que a apreensão dos brasilienses é injustificada e não passaria de “narrativa”. Todavia, técnicos calculam que a perda, ao longo dos próximos 10 anos, será de 80 bilhões.

É despropositada a proposta aprovada dentro do pacote do arcabouço fiscal. Não consta que que as excelências tenham vedado a receita de nenhum outro estado ou município. Então, por quê retirar parte dos recursos destinados ao DF? Sob qual critério ou parâmetro?

As excelências passam de terça a quinta em Brasília, saem do aeroporto, vão para o Congresso Nacional, sobrevoam a cidade de avião e voltam para seus estados. Mas Brasília não é só a Esplanada dos Ministérios; é uma metrópole com mais de 3 milhões de habitantes, a terceira maior cidade do país, ultrapassou Salvador, recentemente, só ficando atrás de São Paulo e do Rio de Janeiro. Há o Plano Piloto, que é Patrimônio Cultural da Humanidade, e Sol Nascente, a maior favela do Brasil, segundo o IBGE. Existem muitas Brasília dentro de Brasília.

O DF não é só o Plano Piloto; o DF é uma das unidades da federação com maiores desigualdades sociais e com problemas que, se não forem atacados, se tornarão explosivos para o país. Não pensem as excelências que ficarão imunes e permanecerão inalcançáveis dentro da bolha em que vivem. O argumento do privilégio a Brasília não resiste a uma análise rápida.

Se existe uma casta de privilegiados em Brasília é precisamente a classe política, formada por representantes de todos os estados da federação. O país pode passar pela dificuldade mais extrema, mas eles vivem em um mundo paralelo legislando em causa própria e sempre desfrutando de benesses imorais.

Em 2022, o fundo eleitoral foi de R$ 4,9 bilhão, e o fundo partidário ficou em 1,1 bilhão. É daí que decorre a imagem de que Brasília seria uma ilha da fantasia. Mas, vejam, enquanto isso, o Fundo Constitucional do Distrito Federal, que contribui para o funcionamento de uma capital e de uma metrópole de 3 milhões de habitantes , é de R$ 23 bilhões. Brasília é a cara do Brasil, com todas as suas grandezas e misérias.

Agora, é um dos momentos de colocar à prova os candidatos escolhidos como representantes da política pela população para encarar um problema grave. Vemos parlamentares mais preocupados em prestar solidariedade a golpistas do que em mediar a crise da educação. Será um triste legado para essa geração de políticos.

Com certeza, a tentativa de golpe de 8 de janeiro, numa apoteose da boçalidade, influenciou na decisão e na má vontade com Brasília. Mas é preciso discernir com lucidez quem é quem neste jogo. Os golpistas precisam ser punidos exemplarmente, no entanto, a população do DF não pode ser castigada pelos erros de governantes e de agentes públicos.

A retirada de parte significativa do Fundo Constitucional acirrará ainda mais os graves problemas do DF. Se essa for uma retaliação contra a boçalidade de 8 de janeiro, seus autores estão equivocados, é uma vingança covarde, pois o maior alvo será a população vulnerável das periferias do DF, que padece com péssimos serviços de transporte público, de segurança e de saúde. Quem não gosta de matas, quem não gosta de cultura, quem não gosta de índios, quem não gosta de Brasília não gosta do Brasil.

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