Severino Francisco
Nos tempos em que lecionava em uma faculdade, questionei bastante a música sertaneja. Uma aluna replicou que eu estava ofendendo o seu gosto musical. Esclareci que não; o meu ponto de vista era apenas o de um analista cultural. Simplesmente, discutia valores culturais.
A primeira fase de minha adolescência ocorreu sob a órbita da Jovem Guarda de Roberto Carlos, Erasmo Carlos de Wanderléa. Quando eu tinha 13 ou 14 anos, comprava os discos, lia as revistas e estampava nas paredes do quarto pôsteres de Wanderléa como se ela fosse uma estrela holliwoodiana.
Pois bem, o tempo passou, me tornei jornalista cultural e, aos 22 anos, portanto, oito anos depois, entrevistei Wanderléa em Brasília. Ela foi muito simpática, lembrei do fascínio da adolescência, mas observei que, agora, eu tinha uma visão crítica da Jovem Guarda. Wanderléa disse que aquele período havia sido maravilhoso, no entanto, também não era mais uma adolescente e cantava um repertório diferente. Evoquei o episódio porque queria mostrar à aluna que o nosso gosto estético não é absoluto; é relativo, depende dos valores, da educação e das experiências.
Logo depois da Jovem Guarda, entrei em contato com a Tropicália, de Caetano Veloso, Gilberto Gil e Gal Costa, nos programas de tevê. Caetano aparecia dentro de uma jaula, vestido com o parangolé de Hélio Oticica, jogando bananas e cantando: “É preciso estar atento e forte/Não temos tempo de temer a morte/Tudo é perigoso/Tudo é divino maravilhoso”.
A Tropicália caiu em minha cabeça como um objeto não identificado. Todavia, aos poucos, percebi que ela fazia uma colagem surreal e crítica de dimensões contraditórias do Brasil: o samba e o rock, o tamborim e a guitarra, a bossa e a fossa, o palácio e a palhoça, a poesia de vanguarda e a breguice, Luiz Gonzaga e Vicente Celestino, os parangolés de Hélio Oticica e os arranjos eruditos de Rogério Duprat, a alta costura e a alta cultura.
Caetano Veloso declarou, recentemente, no tom quase sempre provocativo, que a música breganeja e o funk carioca eram a nova tropicália. Com todo respeito e com a quase devocão que tenho por Caetano, permita-me discordar. Parece-me que a música breganeja e o funk carioca (apesar da inventividade musical) constituem, não a nova tropicália, mas, sim, a nova mediocrália.
A música breganeja é de uma alienação e de um conformismo inacreditáveis. É uma trilha sonora da distopia. Enquanto isso, algumas letras do funk são revoltantes pelo desrespeito às mulheres.
Em compensação, fico impressionado com a atualidade dramática do rock, celebrado em evento no CCBB, e com o punk da década de 1980. O rock da década de 1980 nasceu do inconformismo do punk.
Confiram a indignação expressa na canção Inimizade, do grupo Cólera, diante da servidão voluntária: “Inimizade eu tenho por aqueles que querem comandar/Que querem obter o poder às custas de enganar e roubar/Inimizade eu tenho também aos que se deixam enganar/Que fecham os olhos pra não ver os grandes roubarem/Inimizade, inimizade! Eu não sei!”
Essas canções explosivas foram compostas na década de 1980, mas nunca estiveram tão atuais ante o conformismo de quem vive alienado na bolha virtual. São gritos primais de insubmissão, provocação e alerta.”Como esse mundo vai pra frente/se só existe delinquente?/O mundo acabará numa grande explosão/Cegos, surdos e mudos nada ouvirão”.
PS: Hoje, às 20h00, a TV Senado exibe o magnifico show que Fausto Nilo apresentou, há algumas semanas, no Clube do Choro, em homenagem aos irmãos piauienses Clodo, Climério e Clésio.
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