Severino Francisco
Fui ver a exposição Meu Galeno, na Referência Galeria de Arte, na 202 Norte. Ela reúne obras de colecionadores. Uma amiga havia me enviado fotos, mas é sempre mais impactante ver ao vivo. É impressionante como Galeno extrai a fantasia e a surpresa dos mesmos elementos da memória de menino no Parnaíba piauiense: os carrinhos de lata, os carretéis de linha, as latinhas de sardinha, os barcos artesanais, as pipas, os anzóis, os signos indígenas.
É como se montasse, com poucos elementos, um quebra-cabeças de infinitas possibilidades. O Parnaíba atravessa Brasília e Brasília transpassa o Parnaíba. Um barco transporta a carga lírica de carretéis, lamparinas, pipas, flores e cores. A pirâmide do Teatro Nacional se transmuta em um carrinho de lata e leva os signos da memória de menino inebriado pelas formas e pelas cores. Carretéis são empinados no céu como se fossem pipas sob um fundo azul celestial.
Em quase tudo, se irradia uma alegria de festa popular brasileira. Mas existem quadros em que reponta em primeiro plano a trama de signos da cultura arcaicos da cultura indígena, com o fundo branco, talhados na madeira, com carretéis encravados no meio. É interessante como Galeno consegue fazer com que esses quadros transmitam tanta energia, emanada apenas do branco, sem a exuberância de cores de outros trabalhos.
Galeno não era conceitual; era pura intuição. No entanto, mantinha-se atento às experimentações da arte do seu tempo. Ele consegue mixar duas vertentes, a princípio, inconciliáveis: o artesanato popular e a arte contemporânea. Em vez de jogar a experiência da infância de menino pobre do delta piauiense para baixo do tapete, ele a incorporou, plenamente, à sua arte, com muita sagacidade.
Eu soube que, depois da exposição montada, a curadora e proprietária da Referência Galeria de Arte, Onice Moraes, recebeu a visita de várias pessoas reivindicando participar da exposição com outras obras do Galeno. Pois bem, gostaria de registrar que estou nessa lista. Acompanhei Galeno desde quando ele era um pretenso artista de Brazlândia. Ele me presenteou com um belo quadro e, ouso dizer, um dos mais belos quadros que pintou.
O suporte é uma peça de madeira rústica com que se construíam barracos nos tempos pioneiros de Brasília. Não é uma escolha fortuita. O suporte integra a pintura. É pintura de uma simplicidade requintada. Os materiais são precários, mas a visão é modernista. Sob o fundo, imaculadamente, branco, duas ripas azuis cruzam o espaço do quadro, em linha vertical. Mas Galeno inverte e subverte a relação entre Plano Piloto e periferia, monumento e barraco, presente e memória.
No canto direito baixo, em formato minimalista, aparece um prédio brasiliense meio torto. Em contraste, no canto alto da esquerda, em primeiro plano, desponta um calango com a mesma dimensão do monumento, quase como se fosse uma inscrição rupestre. Enquanto isso, quase no mesmo nível, à direita, se destaca um balãozinho de são-joão geometrizado em amarelo e preto.
A composição emana uma intensa energia lírica e uma sabedoria no uso da cor. Parece um céu de Brasília na parede. E é resultado do embate de Galeno com a arte de Athos Bulcão e de Volpi. No entanto, ao fim, tudo resultava em puro Galeno. É Brasília recriada pela memória e pela fantasia do curumim arteiro. Mas o suposto esquecimento de não incluir o meu quadro é brincadeira e pretexto para falar da pintura, existem muitos outros Galenos excelentes espalhados por felizardos na cidade, que tiveram o privilégio de ser contemporâneos de um artista tão talentoso. Vale a pena passar pela Referência, na 402 Norte, para apreciar a arte de Galeno.

