Severino Francisco
João Bosco e Aldir Blanc formaram uma dupla tão inspirada quanto Tom Jobim e Vinicius de Moraes, Nelson Cavaquinho e Guilherme Brito, Jards Macalé e Waly Salomão, Romário e Bebeto. Aldir pertence à linhagem dos letristas-poetas, dos poetas-compositores, inaugurada por Vinicius de Moraes. Segundo José Miguel Wisnik, eles constituem a tradição de uma gaia ciência brasileira, uma tradição de pensadores dionisíacos, inventores de um saber poético-musical. Eles projetam uma utopia de Brasil.
Da linha de passe de Bosco e Blanc saíram canções que já nasceram clássicas. Nação, iluminada pelo canto solar de Clara Nunes, é uma das minhas preferidas. Blanc flagra Dorival Caymmi em conversa bem-humorada com Oxum, humanizando os deuses: “Dorival Caymmi falou pra Oxum/com Silas estou em boa companhia/o sol abraça a terra/deságua o rio na baía”. As entidades afro-brasileiras são convocadas a interagir com as florestas, a terra, os rios e os mares: “Labarágua, Sete Quedas em chamas/oxumaré, cobra de ferro/homem mulher na cama”.
Uma outra que adoro é O ronco da cuíca. Nela, Aldir Blanc estabelece, com muita agudeza, a conexão entre o som do tradicional instrumento do samba e o barulho da fome na barriga, imprimindo um acento trágico ao ritmo associado à alegria. Colocou a fome no coração do samba, sem nenhum panfletarismo: “Roncou, roncou/Roncou de raiva, roncou de fome/Alguém mandou parar a cuíca/É coisa dos home/A raiva dá pra parar/dá pra interromper/A fome não dá para interromper/Roncou, roncou…”
Fui a um sebo de discos com a minha esposa e encontrei uma caixa com CDs em liquidação por R$ 1 cada. Arrematei quase tudo. No pacote, veio um disco de Elis Regina, coloquei para tocar no carro e, na segunda faixa, irrompeu do fundo aquela gaitinha maravilhosa de O bêbado e o equilibrista. Já começa com um verso arrasador, que poderia ser assinado por Maiakóvski: “A tarde caía como um viaduto”.
É impressionante como aquela canção delicada se tornou o símbolo da luta pela redemocratização na virada das décadas de 1970/1980. A minha esposa perguntou se eu estava com gripe ou tinha chorado. Respondi que nem uma coisa nem outra, havia caído um cisco no meu olho. É que lembrei como foi difícil a luta pela redemocratização. Que sufoco. Brasília participou ativamente com vários comícios. Renato Russo, Fê Lemos e Dado Villa-Lobos estavam lá.
E há outra conexão importante com Brasília: o primeiro hino do Pacotão, o bloco que desfila na contramão do autoritarismo, foi o samba Plataforma, de Bosco e Blanc. E, depois de toda essa luta, agora, uma horda de ignorantes se articula para realizar manifestações antidemocráticas que envergonham Brasília.
Mas isso vai passar, o Brasil ainda será um país à altura das canções de Aldir Blanc. O silêncio deste governo em relação à sua morte é a maior prova de que Aldir é um grande brasileiro: “Dorival Caymmi falou para Oxum/com Aldir estou em boa companhia…”