Abóbora de jabuticabeira

Publicado em Crônicas
Crédito: Kleber Sales/CB/D.A Press.
Severino Francisco
          Em tempos de confinamento, vários amigos reaparecem misteriosamente. E um deles é Luiz Martins, professor da UnB e poeta. Ele me diz que, com a reclusão imposta pelo coronavírus, a gente presta mais atenção aos objetos, aos acontecimentos e à paisagem da casa.
        Luiz mora em um condomínio rural de Sobradinho, estava mirando a janela quando observou um fato interessante: as ramas de abóbora subiram nas árvores de frutas e se aninharam na copa das árvores. Mas, antes de desfiar a trama da história é preciso contextualizá-la com outra de Monteiro Lobato.
          Lobato escreveu um conto protagonizado pelo personagem Américo Pisca-Pisca. Pois bem, América era opiniúdo, tinha o hábito de botar defeito em tudo e mete na cabeça a ideia de fazer uma reforma da natureza. Denuncia  que a natureza só faz asneiras. E argumenta: ali está uma enorme jabuticabeira sustendo frutas pequeninas e, mais adiante, uma abóbora enorme presa ao caule de uma planta rasteira. Não seria mais lógico que fosse tudo invertido?
Crédito: Kleber Sales/CB/D.A Press.Crédito: Kleber Sales/CB/D.A Press.

 

        E, no ápice da arrogância, começa a especular se a natureza não seria melhor se ele fosse inteiramente reorganizada por ele. Desta maneira, as jabuticabas mudariam para as ramas das abóboras e as abóboras para o alto das jabuticabeiras. No seu entender, nosso personagem provou que tudo estava errado e, modestamente, Pisca-Pisca achava-se o único no mundo apto a fazer uma reforma na natureza.
       Todavia, fatigado de tantos devaneios, Pisca-Pisca resolve tirar uma soneca embaixo da jabuticabeira. Dormiu e sonhou com a natureza reformada. Mas eis que uma jabuticaba caiu-lhe bem no meio da testa e ele acordou assustado. E fez a reflexão dramática: já pensou se tivesse reformado a natureza e uma abóbora lhe acertasse a cabeça. Seria a primeira vítima do desatinado projeto.
Credito: Luiz Martins/Arquivo pessoal. A aboboreira que subiu na jabuticabeira.
             Voltemos ao quintal do Luiz. Ele me enviou uma série de fotos para comprovar a história. As cenas reveladas parecem a reforma ideada por Américo Pisca-Pisca transformada em realidade. As ramas de abóboras subiram as jabuticabeiras, se entrelaçaram aos galhos, se fundiram na mesma trama vegetal e se acomodaram no alto da fruteira.
         E não se apossaram apenas das jabuticabeiras; ascenderam também às goiabeiras e aos mamoeiros. De modo que o quintal-chácara de Luiz virou uma obra de ficção, um verdadeiro Sítio do Picapau Amarelo.
Credito: Luiz Martins/Arquivo pessoal. Cena do Sítio do Picapau Amarelo: abóbora em jabuticabeira no quintal de Luiz Martins.
             Lá, é possível  encontrar abóbora de jabuticabeira, goiabeira de abóbora, aboboreira de mamão, mamoeiro de abóbora, aboboreira de goiaba. É preciso deixar claro que  a reforma da natureza de Luiz não foi, em nenhum momento planejada, aconteceu à revelia, pois ele não se preocupa com assuntos hortifruti; só pensa em poesia.
        O fato é que, de sua despreocupação agrária, vicejaram abóboras do tamanho de jacas em cima das fruteiras. Eu não me arriscaria a tirar uma soneca embaixo das jabuticabeiras do Luiz.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

*