Ferreira’s Week

Publicado em Crônicas

Severino Francisco

O nosso editor José Carlos Vieira disse que esta foi a Ferreira’s Week porque os irmãos Clodo, Climério e Clésio tiveram destaque com o lançamento do livro A profissão do sonho e com o show Existência, de João e Pedro Ferreira, filhos de Clodo, no Clube do Choro. Que me perdoe o leitor, mas não posso fechar a Ferreira’s Week sem um registro desse belo show, ainda que de maneira apressada e atabalhoada.

João toca violão e é arranjador do Natiruts; e Pedro é forrozeiro, capoeirista, percussionista e cantor. Eles revisitaram clássicos como Cebola cortada, Ave coração, Rixa, com um toque pessoal, e mostraram outras lindas canções menos conhecidas tais como Existência, Mentira da saudade, Carece de explicação e Quem fala de mim: “Amor que é amor não destrói/É melhor um dia sem pressa/Do que um desastre veloz”.

Só se fazem mestres, com mestres, dizia Darcy Ribeiro. Eu assino embaixo. João estudou violão com os craques Paulo André e Jaime Ernest Dias na Escola de Música de Brasília. Ele esbanjou a mestria neste instrumento capaz de expressar todas as nuances da alma brasileira. Merece destaque o arranjo para Carece de explicação, parceria de Dominguinhos com Clodo, no qual o violão parece emitir o lamento da sanfona de Dominguinhos: “E vendo assim sou mais eu/E vou vivendo apesar do amor que você não me deu”.

Nos últimos tempos, para mim, voltar ao Clube do Choro é comovente por uma razão especial. Foi lá que vi, pela última vez, o meu amigo Vladimir Carvalho, no show do cearense Fausto Nilo. Quando entrei, a sala estava cheia, fiz uma varredura com os olhos para identificar quem eu conhecia e, de repente, Vladimir levantou-se, abruptamente, elevou os braços e bradou em tom imperativo paraibano rascante: “Vai sentar aqui com a gente, cabra!”

Apontou para a mesa em que estava acompanhado por Gioconda Caputo e Sérgio Moriconi e saiu em desabalada carreira de menino para pegar uma cadeira para mim, ignorando os meus protestos. Fiquei temeroso de que aquele paraibano de 87 anos caísse e quebrasse algum osso. Lá, Vladimir perguntou pela saúde dos amigos “amarelinhos”, como ele chamava aos conterrâneos nordestinos.

Se estivesse no show de quinta-feira, com certeza, Vladimir teria ficado tocado com a canção Conterrâneos, que nasceu da admiração mútua do paraibano e dos irmãos piauienses, com letra de Climério e melodia de Clésio e Clodo. Considero Conterrâneos uma das mais belas canções sobre a migração nordestina da música popular brasileira, capaz de emparelhar com Luiz Gonzaga, João do Vale, Humberto Teixeira e Patativa do Assaré. Não acreditem em mim, ouçam a canção e tirem as próprias conclusões.

No show, Pedro Ferreira faz uma interpretação para Conterrâneos, colocando a poesia nordestina em primeiro plano, sob a marcação de uma melodia pungente: “Tão nordestino é o desatino/De sonhar/De construir casa e destino/Sem morar/Tão carregado de esperança/Ao partir/Pensando que a hora da volta/Já está pra chegar”.

Eu tenho as minhas intuições sobre o valor de certos artistas e de certas obras ainda não reconhecidos plenamente. Mas eu gosto de testar as avaliações com outras pessoas abalizadas. Assisti ao show na mesma mesa que Valéria Colela, ex-diretora do Canecão, no Rio de Janeiro. Sim, aquela mesma loiraça que me sequestrou, ao chegar no Beirute para o lançamento de A profissão do sonho.

Perguntei a ela: “Você que está acostumada a ver espetáculos de música de todo o tipo, me diga. Esses meninos são bons ou estou enganado e enganando?” Ela me respondeu: “Sim, são muito bons, me fizeram chorar, claro, têm o DNA Ferreira.” E não poderiam ocupar qualquer palco para além de Brasília?, acrescentei. “Já ocupam, o João é arranjador do Natiruts”, ela me respondeu.”Mas em shows nos espaços maiores precisariam estar acompanhados de banda para dar mais peso”.

Durante o show, Pedro Ferreira fez uma declaração muito corajosa e lúcida: “Nesta semana, participamos de uma missa em memória da passagem de um ano da morte de Clodo. Mas, com todo respeito à devoção religiosa, para além dela, eu acho que a gente tem de reverenciar Clodo é em cima do palco do Clube do Choro, cantando as músicas que ele compôs”. Realmente, não há nada mais espiritual do que o cântico. Foi uma linda homenagem que fechou com chave de ouro a Ferreira’s Week; foi um show em feitio de oração.

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