Diário da alma

Publicado em Crônicas

 

Crédito: Letícia Verdi/Divulgação. Maria Lúcia Verdi: poesia que toca no amor, na finitude, no silêncio, na fragilidade e no mistério.

 

Severino Francisco

 

“Poesia como diário/não escrito”, escreve Maria Lúcia em um dos poemas do último livro, Em voz baixa (Iluminuras). É quase uma senha para ler a sua poesia. Ela escreve uma espécie de diário da alma, numa montagem de versos fragmentados, crônicas poéticas e frases soltas, no limiar da prosa: “Como dizem os índios Krenak, é preciso segurar o céu/através da conexão do corpo e da mente com a natureza em/torno e com o cosmos — se nos desconectamos, ele cai”.

 

Mais do que nunca, neste momento, precisamos, dramaticamente, de iluminações, de transcendências e de beleza para manter a nossa sanidade mental. A poesia de Maria Lúcia Verdi parte de situações triviais, mas toca no amor, na finitude, no silêncio, na fragilidade e no mistério.

Crédito: Iano Andrade/CB. Pitangueira no Sudoeste: presença cotidiana em Brasília.

 

O ato prosaico de catar pitangas (minha fruta predileta) é ritualizado em um lindo poema: “catar pitangas, mais que colher/catar primeiro com o olhar o tom certo do maduro/buscar a que se desprenderá ao mais leve toque, quase sopro/não ser enganado pela luz – a madurez, às vezes/questão de ângulo/buscar o rubi pleno a/forma já plena.”

 

O prazer das pitangas começa na contemplação, passa aos dedos e chega à boca, em uma escala de sensorialidade, delicadeza e fugacidade. É prazer multiplicado pela poesia. Os versos dela têm algo da essencialidade oriental: “apenas as que se soltam/desmaiadas entre os dedos leves, estão prontas para a boca/a língua, o nem mastigar/mantê-las na boca por um tempo, ainda que brevíssimo/catar pitangas como as catadoras de chá na China/as infinitamente delicadas”.

 

Nascida em Porto Alegre, Maria Lúcia aterrissou em Brasília aos 16 anos. Mas é uma gaúcha brasiliense e cidadã do mundo. Em razão do trabalho de oficial de chancelaria do Itamaraty, viveu em Roma, em Pequim e em Buenos Aires. Isso também é muito brasiliense. Está sempre atenta, sempre fazendo conexões e promovendo encontros.

 

Depois de retornar a Brasília, Verdi criou o projeto Poesia do Mundo, uma espécie de sarau para a leitura de poetas universais, na língua de origem e em traduções. O projeto caminha para a sétima edição. Ela tem verdadeira devoção pela poesia e não permite que ninguém bata palmas durante a sessão de leitura. A maior homenagem é a escuta atenta e silenciosa.

Os poetas Cacaso e Francisco Alvim, a contista e crítica Vilma Areias e o crítico Oswaldino Marques Alvim saudaram a poesia existencial, meditativa e epifânica de Verdi: “Certamente os longos períodos vividos no exterior contribuíram para esse relativo desconhecimento de sua obra entre nós”, escreve Vilma, no posfácio do livro Em voz baixa. Maria Lúcia Verdi é uma poeta de Brasília e do Brasil.

Credito: Arquivo Pessoal. Colagens do artista plástico Yuri Hermusche para o livro Em voz baixa, de Maria Lúcia Verdi.

 

Ela escava a própria voz na poesia em um paciente e duro embate. Escreve e reescreve incessantemente em busca da forma mais decantada. Cenas triviais ganham dramaticidade e se revestem de um novo sentido sob a luz da poesia: “Sempre que eu te pedir água/me traga um copo bem cheio/estenda a mão devagar/olhe nos meus olhos/naquele lugar seco/que pede água/Tenha, mas não demonstre/a terna compaixão/dos amigos/Estenda a mão em silêncio/aguarde que a minha/atravesse o deserto/alcance o copo”.

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