Cidade invisível

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Severino Francisco

Crédito: Ana Rayssa/Esp.CB/D.A. Press. Brasil. Brasília – DF. Anexo da Câmara dos Deputados

O poeta indiano Abhay K. está em Brasília há dois anos. Ele é embaixador da Índia e sua passagem pela cidade não é burocrática. Faz longas caminhadas de exploração, promove saraus e traduz para o inglês poetas brasilienses. A espacialidade, o vazio, as noites cravejadas de estrelas, as mutações das nuvens, a crispação do cerrado e a paisagem desértica provocam Abhay.

Só pode responder o que é Brasília com poesia. Ele escreveu vários poemas sobre a cidade. Brasília é branca, é uma serpente pronta para dar o bote. É uma cidade contraditória e misteriosa. Se situa em uma mancha sem contorno ou definição precisa.

Crédito: Edy Amaro/Esp. CB/D.A Press. Brasil. Brasília – DF. Abhay K., poeta da Índia.

Alguns poemas são curtos, mas contundentes, como se levasse um celular de lentes poéticas. Vejamos o Pontão: “Praia imaginária/sem mar, sem areia/onde Brasília se junta/sábado e domingo, à boemia!”. A Torre de Tevê: “Entre as duas asas da cidade/no centro, a torre de TV vigia/se veste, atenta/aos extraterrestres”. No Conjunto Nacional: “O que comprar ou não/a cá?/Se, à venda, tudo está”.

Mas, logo que chegou à cidade, Abhay escreveu um longo e belo poema sobre Brasília, permeado de referências a Dom Bosco, à geometria da arquitetura modernista, à Vila Amauri submersa para a criação do Lago, à Clarice Lispector caminhando sonâmbula sobre as águas do Lago Paranoá. Com a palavra, o poeta.

Crédito: Ed Alves/CB/D.A. Press. Brasil. Lago Paranoá.

Brasília é bastante branca

Brasília é terra rubra em manta

Brasília é o diáfano véu sobre a luz que abrilhanta

Brasília é um colar de pérolas que à noite encanta

Brasília é um manjar turco exótico

que me levanta

Brasília é uma cobra prestes a devorar sua janta

Brasília é um vilarejo se passando por cidade

Brasília é uma expressão na geometria da felicidade

Brasília é a cidade invisível de Ítalo Calvino em tenra idade

Brasília é uma profecia de um certo Dom

Brasília é um poema inscrito em pedra, e bom

Brasília é a canção de Carlos Drummond

Brasília é o diamante na coroa

Brasília é um avião imenso que não voa

Brasília é uma vila de Amauri submersa à toa

Brasília é a Clarice Lispector sonâmbula sobre a água

Brasília é o açaí na sobremesa negra, árdua

Brasília é a perfeição do tijolo e da argamassa na frágua.

Brasília é um pedaço de torta espacial

Brasília é uma ilha de fantasia num lago irreal

Brasília é uma noite dominicana frugal

Brasília é a última utopia

Brasília é para a Sylvia Plath uma distopia

Brasília é uma paisagem de ectopia

Brasília é um oásis de pássaros migratórios

Brasília é o oráculo de vocábulos premonitórios

Brasília é uma página de um livro obrigatório

Brasília é uma miragem instável no deserto

Brasília é uma visão pálida de um ponto incerto

Brasília é um portal que ainda será aberto.

Severino

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Severino

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