Severino Francisco
Não é só a verdade a primeira vítima da guerra; a cultura humanista russa também entra na mira. A Universidade Bicocca, de Milão, proibiu um curso livre sobre Dostoiévski, mas voltou atrás na decisão.
Sou um leitor de Dostoiévski desde os 16 anos. Morava em São Paulo e os meus amigos da rua se divertiam com a suposta brincadeira de pegar os gatos pelo couro e atirá-los nas paredes dos muros. Certo dia, me revoltei e chamei a todos de imbecis, provocando uma explosão de gargalhadas e deboches.
Fiquei me achando o último dos homens, diria Nietzsche. Mas a sensação de ser um extraterráqueo com um olho no meio da testa se desfez ao ler Crime e castigo, de Dostoiésvki. A certa altura, uma criança testemunha a cena do espancamento de um cavalo e se abraça ao animal ensanguentado, impedindo a sessão de chicotes, aplaudida pela turba boçal da rua.
Sob a inspiração dos agitadores do socialismo científico, Dostoiévski participou de uma conspiração contra o Tzar Nicolau 1, a trama foi descoberta e ele recebeu a condenação de fuzilamento sumário. No entanto, minutos antes da execução, recebeu a notícia de que a pena havia sido comutada em prisão no território gélido da Sibéria.
Depois de 8 anos, ele retornou à Rússia e escreveu obras primas em que polemizou com o socialismo científico e expressou um cristianismo singular: “De repente, dois e dois igual a cinco pode ser uma coisinha muito interessante”, diz o personagem de O homem subterrâneo.
Com seu espírito visionário, Dostoiévski antecipava, no século 19, a crise moral que viveríamos nos séculos 20 e 21: “Se Deus não existe, então tudo é permitido”, dizia o personagem Ivan, de Os irmãos Karamazóvi. Em O idiota, Dostoiévski coloca como protagonista, o príncipe Minktin, uma espécie de Cristo russo redivivo no século 19, crucificado novamente pela estupidez. Mas reafirma a convicção de que a compaixão é a mais alta ideia humana e, sem ela, o homem anda de quatro.
Sempre tive muita curiosidade de ler Os demônios, uma ficção de mais de 1.000 páginas. Imaginava que se tratava de um fenômeno de possessão espiritual a interferir na ação dos personagens. Mas, na verdade, Dostoiévski realiza uma crítica incisiva à crise de valores do mundo ocidental. É possível vivermos sem valores morais, movidos apenas pelos nossos desejos, prazeres ou ideais?
Dostoiévski era fascinado pelos casos criminais. Ele ficava impressionado pelo fato de que, na língua russa, criminoso e infeliz fossem quase sinônimos. Os personagens de Os demônios são conspiradores e revolucionários que cometem crimes hediondos.
No entanto, diferentemente do que sugere o título, eles não realizam nenhum pacto com o diabo ou qualquer outro tipo de transação sobrenatural. O que os torna demônios é o fato de serem niilistas, de não acreditarem em nenhum valor moral, de agirem animados pela ideia de que a sua liberdade está acima de tudo.
Angela Merkel disse que Putin é um personagem do século 19 perdido no século 21 da ordem do direito internacional, da interdependência econômica e dos celulares. Ele acha que pode invadir um país vizinho e instalar a barbárie em nome do ideal de restauração da União Soviética. Já vimos o que a ideia de predestinação de um povo pôde causar no nazismo.
Dostoiévski também acreditava na unção do povo russo, mas é o escritor da revelação do outro. Injeta adrenalina existencial, filosófica, humanística e espiritual para percebemos que, sem reconhecermos o outro, nós nos transformamos em demônios, para além do bem e do mal. Putin é um personagem de Dostoiévski.
Severino Francisco Entrar em contato com Dalton Trevisan, que nos deixou, recentemente, não era difícil;…
Severino Francisco Finalmente, assisti Ainda estou aqui. As imagens do filme ainda ressoam mixadas à…
Severino Francisco Eu tomei um táxi para resolver um para um problema na Asa…
Severino Francisco Em meio a notícias sobre o alastramento de incêndios florestais na Califórnia, nos…
Severino Francisco Conheci Miriam Aquino em um momento de grandes esperanças para o Brasil e…
Severino Francisco Animado pelo espírito de audácia, Assis Chateaubriand, o cangaceiro modernista e modernizador da…