As canções que você fez para mim

Publicado em Crônicas
Crédito: Globo/Mauricio Fidalgo. Roberto Carlos inspirou várias gerações.

 

Severino Francisco

 

A passagem dos 80 anos de Roberto Carlos reavivou-me a lembrança de uma série de canções inspiradas ou em homenagem ao rei do iê-iê-iê. E, confesso, que as criações mobilizaram artistas que admiro mais do que Roberto Carlos. Pertencem à série as canções que você fez para mim.

 

Na verdade, o alheado Roberto Carlos surpreendeu a todos quando, em 1971, período mais duro do regime militar, compôs, em parceria com Erasmo Carlos, Embaixo dos caracóis dos seus cabelos, pungente canção de exílio em homenagem a Caetano Veloso. Certo dia, Roberto apareceu com a esposa Nice em Londres, na casa em que Caetano morava. Pediu um violão e cantou a música: “Você olha tudo e nada lhe faz ficar contente/Você só deseja agora voltar pra sua gente”.

 

Chorei as tais lágrimas de esguicho de que falava Nelson Rodrigues quando ouvi a música. E absolvi Roberto de uma série de omissões e alienações. Caetano devolveu a gentileza com Como dois e dois igual a cinco, que expressava o sentimento de absurdo de ser apartado do país que amava: “Tudo vai mal, tudo/Tudo é igual quanto canto e sou mudo…”

 

Caetano Veloso fez Força estranha, uma das mais lindas canções dedicadas ao líder da Jovem Guarda. Em 1978, ele esbarrou em Roberto Carlos num corredor da Tevê Globo e cada um se admirou da jovialidade do outro, apesar dos cabelos brancos. Roberto disse que os artistas vivem em outra dimensão do tempo. Foi o mote para Força estranha: “Eu vi os cabelos brancos na fronte do artista,/o tempo não para e, no entanto, ele nunca envelhece…/Por isso, esta força me leva a cantar/Por isso, esta força estranha no ar…”

 

A geração pós-tropicalista de Sérgio Sampaio e Zé Ramalho também foi marcada pela música do rei do iê-iê-iê. O caso de Sérgio Sampaio é muito interessante. Ele nasceu na mesma Cachoeiro do Itapemirim de Roberto Carlos. Mas, em certo sentido, Sampaio é o anti-Roberto Carlos. Despontou de maneira bombástica com o samba rasgado Eu quero botar meu bloco na rua, uma espécie de hino da redemocratização.

 

Quando a música estourou, um assessor transmitiu a Sampaio o pedido para que compusesse uma canção no estilo do bloco para que Roberto cantasse. Mas Sampaio não aguentou conviver com o sucesso e não conseguiu produzir a encomenda.

 

E, para descarregar a angústia e a frustração, ele compôs Meu pobre blues, uma canção singela, visceral e dramática: “Meu amigo, um dia eu ouvi maravilhado/no radinho do meu vizinho seu rockzinho antigo/foi como se alguma bomba houvesse explodido no ar/todo o povo brasileiro nunca mais deixou de dançar/e desde aquele instante eu nunca mais parei de tentar/mostrar meu blues pra você cantar”.

Sampaio optou por um caminho independente, mas queria experimentar o prazer de escutar a canção na voz de Roberto Carlos: “eu não preciso de sucesso/só quero ouvi-lo cantar/meu pobre blues e nada mais/é tão simples…” Roberto bem que podia ter gravado Meu pobre blues.

 

Zé Ramalho apresentou, pessoalmente, a canção Ondas, para Roberto Carlos no Iate Lady Laura. Mesmo assim, Roberto nunca gravou. Ondas se tornou um sucesso na voz rascante de Fagner e foi gravada por Ray Coniff. Mas eu prefiro a interpretação apocalíptica do próprio Zé Ramalho: “Quanto tempo temos antes de voltarem/Aquelas ondas/Que vieram como gotas de silêncio tão furioso/E se teu amigo vento não te procurar/É porque multidões ele foi arrastar.” Esse rico diálogo com Roberto Carlos foi interrompido pela música breganeja, que gira em torno de si mesma.

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