Vladimir Carvalho é épico, nervoso, inconformado e inflamável; não pertence à família dos mornos da parábola bíblica, com passaporte carimbado para o inferno. Tem vários defeitos que o humanizam, mas é uma pessoa de rara nobreza. Sempre toma partido. Se jogarem Flamengo e Bonsucesso, ele não terá dúvidas em torcer para o mais fraco. Pois vivi uma noite de Bonsussa. Vamos ao caso.
Há alguns anos, recebi um convite para quatro pessoas e fui com meus dois filhos assistir ao documentário A música segundo Tom Jobim, dirigido por Nelson Pereira dos Santos, no shopping CasaPark. Todavia, sou um alienado incurável de etiquetas sociais e não me dei conta de que precisava confirmar a presença pelas iniciais da senha r.s.v.p., em letra miúda. Répondez s’il vous plait (“Responda por favor”, em francês).
Fiquei bravo e cobrei: “Vocês estão cometendo uma deselegância e uma burrice. Me convidaram e estão me desconvidando. Estou trabalhando, sou jornalista e vim para ver e escrever sobre o filme”.
Quando avistou o bafafá, Vladimir se aproximou, e eu expliquei o que ocorria. Neste ínterim, uma outra moça da produção do evento veio aflita de dentro da sala: “Senhor Vladimir, o Nelson Pereira está esperando só o senhor para iniciar a exibição do filme”.
A esta altura, o sangue paraibano já havia subido, o cangaceiro baixado e Vladimir fervia de indignação, com olhos chispantes: “Se o Severino não entrar, eu não entro!!!”, disparou em tom épico. A partir daí, deixei de me preocupar comigo e passei a ficar angustiado com um estremecimento no alto escalão do Cinema Novo por causa de uma suscetibilidade minha que havia se tornado ridícula em face dos acontecimentos.
Apreensivo, tentei convencê-lo a entrar no cinema, mas a sua companheira, a escritora Lucília Garcez, interveio com realismo de quem sabe o que fala: “Você não conhece Vladimir, não adianta, ele não vai entrar”. Não era uma ação de compadrio; Vladimir estava solidário ao jornalista cultural que ele foi um dia. No entanto, em um átimo, bateu-me uma intuição fulminante, irresponsável e gratuita, e eu a obedeci.
De chofre, rasguei os quatro convites, os transformei em confetes, enchi as mãos espalmadas e joguei para o alto. A chuva de papel picado caiu em minha cabeça e nas das recepcionistas.
Elas ficaram assustadas em um primeiro momento, mas, em seguida, sorriram, enquanto desembaraçavam papeis nos cabelos. Os que não conseguiram ver o filme aplaudiram a performance de maneira estrepitosa, liderados por José Damata, o comandante do Cinema Voador.
Meus filhos aprovaram plenamente o protesto. Sentia-me um pierrô de condomínio do Jardim Botânico. Embora tivesse origem em um gesto brusco, era uma vingança delicada, meio chapliniana, meio cinematográfica, meio lírica contra a burocracia cultural. Répondez, s’il vous plait.
Estava chateado, mas, em um átimo, saí feliz de volta para casa, com aquele chuvisco desajeitado de papel, e, sobretudo, com a solidariedade absurda e insensata do Vladimir. No dia seguinte, liguei para a Lucília e ela informou que Vladimir se recusou a assistir ao filme, no entanto, ficaram bem, conversando em um restaurante no próprio shopping.
Por essas e por outras, brindemos Vladimir, nosso defensor público do Bonsucesso, nosso líder das causas vencidas, nosso herói das causas perdidas. Brindemos nosso Dom Quixote paraibano, que nos engrandece com seu idealismo e nos ensina, com sua vida, o que é a verdadeira nobreza.
Crônica republicada de 14 de dezembro de 2023
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